ENTREVISTA CONCEDIDA POR VICENTE PINTO – Parte 8
De: REPÓRTER ESSO
Para: JORNAL DO PUTIÚ
RE: Amigo Vicente, vizinho ao seu Antônio Bruno, sobre quem você já se manifestou aqui, morava um pessoal simples, pobre mesmo, em casa de taipa, telhado com queda d’água frontal, porta e janela, sem calçada, isolada, em curto recuo em relação à margem da estradinha carroçável, pelo lado da descida. Você se recorda dessa família? Das pessoas que formavam essa família?
VP: Eu não só me lembro, como eram meus amigos. Era a família do seu Raimundo de Freitas, sobre quem tenho uma história bem engraçada pra contar. Ele cismou de chamar o seu Oscar Dantas, então chefe da estação, da estrada de ferro, para ser padrinho de uma de suas filhas, tornando-se compadre dele. O povo achou ter sido aquilo uma grande pretensão. O chefe de estação, naquele tempo, era tido como autoridade. Pois bem. Os gozadores passaram a chamar o pobre homem de “Compadre Raimundo”. Era “Compadre Raimundo” pr‘aqui, pr’ali e pr’acolá. Ele começou a brigar com o pessoal: “Eu não sou seu compadre; eu sou compadre é do seu Oscar Dantas”. Você sabe como é a turma. Eles encarnaram no coitado que trabalhava como carreteiro lá na Rua (1). O seu Raimundo ficou tão irritado com o pessoal que, quando voltava do trabalho, em vez de vir pelo Putiú, o trajeto natural, ele vinha pela Lajes, entrava no sítio do seu Porfírio, o pai do Inácio, e saía pelo da dona Preta, atravessava os trilhos e subia a ladeira que dava acesso à sua casa. Após alguns dias sem vê-lo voltar pra casa, os gozadores se perguntavam: “O que é que está acontecendo com o seu Raimundo de Freitas? Será que adoeceu? Está doente?”. Descobriram. Entraram no sítio do seu Porfírio e se esconderam em meio às bananeiras. Esperaram. Quando o pobre homem ia passando, eles o surpreenderam: “Compadre Raimundo, o senhor agora vem por aqui?!”. (Risos). Fizeram isso com ele. Eu gostava de conversar com ele. Quando morei no Rio de Janeiro e vinha passar alguns dias por aqui, costumava dar um trocado a ele. Nunca se zangou comigo. Até tinha brincadeira, mas nada que o desmerecesse. Pois bem. A esposa do seu Raimundo de Freitas era a dona Mariana. Ela era branca; ele tinha pele escura. Os filhos do casal eram: a Maria, que se casou com o Joaquim do Coió; a Francisca que, já moça velha, de uma certa idade, casou-se com o pai da Clarice, também já idoso; o Antônio, que se juntou com uma mulher lá pras bandas da Itapiúna e por lá mesmo ficou até morrer; o Geraldino, que se casou com a Alaíde e morava no Alto da Capela; a Geraldina, que se casou com o Luís e morava no antigo Beco sem Saída (atualmente tem saída pelo Posto); e o Paulo, o mais moreno. Era esse pessoal todo. Eu ainda vou escrever sobre tudo isso porque acho que vai dar um bom “ibope”.
RE: Vicente, como você deve estar acompanhando, estou escrevendo sobre o Putiú dos meus tempos de adolescente (ASSIM ERA O MEU VELHO PUTIÚ...), puxando da lembrança os nomes das pessoas que residiam em quase todas as casas do bairro, numa sequência como se fosse Censo do IBGE. Aqui e acolá, apelo para a ajuda de outras pessoas (o Bosco do Mosael; os meus irmãos Carlos César e Eliane; e agora você). No caso do seu Raimundo de Freitas, forcei a memória e não conseguia lembrar-me dele. Bastou você citar o nome "Raimundo de Freitas" e tudo logo veio à memória. Lógico que eu também conhecia esse pessoal, não assim com os detalhes que você acaba de contar. Mas a gente era ouvinte dos causos do seu Antônio Bruno. E seu Raimundo, uma vez ou outra, parecia ouvir da porta da casa dele as "mentiras" do vizinho. Acho até que os dois não se davam muito bem. Ou a nossa presença ali, as conversas, as risadas, tudo isso devia causar-lhe algum incômodo. O Geraldino era quem, aqui e acolá, se aproximava da gente. Agora, apelido é um negócio chato; quando a pessoa se zanga, aí é que o negócio pega.
VP: O Geraldino – vinha uma menina que devia ser prima deles –, era ele quem ficava com tal criatura. Quando ela vinha de Fortaleza, onde se prostituía, em Baturité era o Geraldino quem ficava com ela. Ou melhor, corrigindo. Não era o Geraldino, era o Paulo. Nas noites, à luz de lamparina, quando o Paulo ia pra rede dela, colocava uma mão de pilão na rede dele para disfarçar, para quem de longe visse achar que tinha gente (ele) dormindo na rede dele. Só que, uma certa vez, o Antônio se levantou, foi até à rede do Paulo e, sentindo aquele negócio duro dentro dela, gritou: “Mãe, o nego Paulo morreu!”. Era o fim da tramoia. (Risos). Outra coisa, a vida era muito difícil. O seu Raimundo de Freitas confeccionava esteira para animais, para ser usada entre o lombo e a cangalha. Ele fazia isso muito bem e à base de melão-caetano. (2). Era outro meio de sobrevivência.
RE: Esteira de melão. Vi gente batendo o melão-caetano numa curva do rio, antes do portão de acesso ao sítio do seu Porfírio. Lembrar-se disso é muito bom.
VP: Com o seu Raimundo de Freitas, tanto eu o via apanhando o melão-caetano, geralmente em cercas, quanto levando para o rio, botando de molho com uma certa arte para as águas não levarem o produto; não sei quanto tempo demorava isso, mas passado esse tempo, dois ou três dias, ele chacoalhava tudo aquilo na correnteza do rio, depois batia de pau, deixando tudo bem branquinho, bem limpinho; deixava uns dias secando ao sol e aí fazia as esteiras. Tanto fizesse quanto vendia. Ele fornecia a comerciantes que então revendiam. Vendia demais. E ele era muito trabalhador. Criou a família praticamente assim. Grande sujeito. E a Maria, a filha mais velha, era um “tipão” de mulher; casou-se com o Joaquim que era folclórico, muito engraçado. Eu sei muitas histórias do Joaquim. Talvez eu ainda conte algumas delas.
Notas do Repórter:
(1) “Carreteiro lá na Rua” – o nome “carreteiro” assumia um sentido que variava do que consta dos dicionários, qual seja o de “proprietário ou condutor de caminhão ou carreta que transporta cargas a serviço de terceiros”; aqui o transporte ou carreto era feito pelo próprio homem, geralmente usando os ombros ou a cabeça; quanto à “Rua”, equivalia ao centro da cidade, polo comercial ou residencial.
(2) Melão-caetano ou melão-de-são-caetano – planta trepadeira, nativa das regiões tropicais, tem flores solitárias amarelas e é cultivada sobretudo pelo seu fruto oblongo, de casca rugosa e sementes vermelhas e oleaginosas, usado na alimentação e para fins medicinais, sendo também conhecida por balsamina, caetaninha, caetano, caramelo, erva-de-são-caetano, melão-amargo, melãozinho, são-caetano, etc. (Fonte: Google).