ENTREVISTA CONCEDIDA POR VICENTE PINTO – Por áudio (Parte 4)
DE: REPÓRTER ESSO
PARA: JORNAL DO PUTIÚ
RE: Amigo Vicentinho, bom dia. Espero encontrá-lo com a saúde de ferro, os olhos de lince, a disposição de leão e a memória de elefante. Faço-lhe, então, um pedido. Retomemos a nossa tão rica conversa da vez anterior. Acho que há alguns pontos que merecem complemento. É o caso das visitas do Ferroviário, então campeão cearense. É óbvio que toda a comitiva (diretores, comissão técnica, jogadores e auxiliares) vinha e voltava de trem. Você pode nos contar como tudo isso aconteceu? Onde esse pessoal se acomodava até a hora do jogo? Era no Monte Mor que o jogo ocorria?
VP: Meu caro amigo, nessa época, exatamente no ano de 1957, eu tinha 19 anos. E vi, nesse ano, o Ferroviário vir duas vezes a Baturité. Não me lembro das datas. Na primeira, eles passearam em campo, venceram o time dos “doutores” por 12x0 e só não marcaram mais gols porque não quiseram. Formavam o time local os dentistas – doutor Clóvis, doutor Zé Rosa – os médicos, o pessoal do Cartório – o João Batista e o irmão dele –, o Pupu e o Riba, que eram filhos do Zé Pinto Garcês, dono de sapataria, uma loja de sapatos que ele mesmo produzia por encomenda. Era esse pessoal, então considerado o povo rico da cidade. Havia, naquele tempo, uma diferença de cunho socioeconômico: da ponte pra cá, eram os “indiozinhos”, os índios de Baturité; gente mesmo só tinha da ponte pra lá. Mas... saiamos dessa. O trem de passageiros era a menina dos olhos de todo o mundo. E o Ferroviário era o dono do trem, da própria Rede Viação Cearense. E, já na segunda vez, três meses depois, o campeão cearense do ano veio num trem todo especial, vagões bem cuidados, tudo muito bem organizado. Um vagão reservado para jogadores e diretoria. Nos demais, os familiares e torcedores. Era um trenzão – entre nove e onze vagões, não sei bem. Todos os jogadores com ternos de cor cinza... a coisa mais linda do mundo... algo que mexia com a gente. O Ferroviário impunha respeito. Numa época em que todos os ferroviários eram obrigados a contribuir financeiramente com o clube; o valor já vinha descontado no contracheque. Até o meu pai, que não gostava de futebol nem um pouco, contribuía. Eu sou torcedor do Ceará, mas não posso negar que o Ferroviário da época era o Fortaleza de hoje. Estava no auge do negócio. Era o “bonitão”. Pois bem. Agora, sobre as acomodações, aqui em Baturité tinha um hotel pertencente ao seu Canuto, um senhor muito simples, humilde até, ninguém dizia ser ele dono de hotel. Ele era o meu padrinho de Crisma, em substituição ao José Mesquita Pinheiro, dono de loja de tecidos, que, alegando “estar muito ocupado”, cedeu lugar ao dono do hotel que, com certeza, não tinha como acomodar tanta gente. Bem, aí os “doutores” – creio eu – tiveram de levar algumas pessoas pra suas casas. O jogo foi no Monte Mor, campo onde aconteciam as disputas do Distrital, envolvendo o Madureira, o Santos, a Ponte Preta, do Jajá, um cidadão que vendia frutas nos trens e era muito interessado por futebol, além do América do Luiz Pinheiro. Sempre fazíamos as preliminares. No dia do jogo do Ferroviário, não me lembro se houve preliminar. Mas me lembro de alguns detalhes. Por exemplo, o Pacoti era o fenômeno, ao ponto de o treinador deles, ao ver que se tratava de um time diferente, fazer uma aposta como ele marcaria dois gols. E eu, ali sentado na lateral do campo, acompanhei o comportamento nervoso do homem. Toda bola que o Zé de Melo, meia-esquerda coral, pegava, vinham os gritos: “Põe no pé do Pacoti! Dá no pé do Pacoti!” O Baturité perdeu de 3x2 e o “fenômeno” fez dois gols. O treinador ganhou a aposta, embora o jogo tenha sido disputado.
RE: Lembra-se de mais algum detalhe?
VP: Sim. Quando os doutores perceberam que não davam pro negócio, vieram chamar os “indiozinhos”, os índios do Putiú, pra jogar: o Antônio Guariba, o Zé Batista, que era filho do mestre-de-obras Manuel Batista, um dos dois que disputavam “quem era o melhor”, ele trabalhando com as irmãs salesianas e o outro, seu Antônio... o sobrenome ora não me recordo... servindo os padres salesianos. Pois bem. O Zé era meio-campista, um craque. O João Batista, irmão dele, foi artista contratado da Ceará Rádio Clube, tocava violão muito bem e morava em Fortaleza. O goleiro do Baturité era o João Louro. Ainda tinha o Carcará, o Pupu e o Riba. Essa era a base do time que então se preparava para as disputas do intermunicipal. Ganhou de todo mundo. Do Quixadá, do Pacatuba. Aqui houve um caso interessante. O Baturité estava ganhando, quando o Ivan Roriz, goleiro do Ceará, então defendendo o Pacatuba, disse assim: “É... o Baturité tem futebol, mas não tem homem”. O seu Osmar Marinho, que costumava entortar e desentortar armador de rede com as mãos, não se conteve: “Pode até não ter muitos homens, mas homem tem lá”. O Ivan instigou: “E quem é?” Seu Osmar não deixou por menos: “Eu... Eu aqui!” E o tempo fechou. A briga só não foi mais feia porque cada soco que seu Osmar dava era uma queda do Ivan e de quem mais se afoitou a enfrentar o homem. Até que chegou a turma do “deixa isso” e os ânimos serenaram.
RE: E o intermunicipal...
VP: O Baturité foi disputar a final, em Fortaleza, e fez o treino de apronto contra o Ferroviário, vencendo por 1x0. Contra o Itapajé, na final, perdeu por 1x0 porque o juiz tomou o jogo. E o que sei do Ferroviário é isso.
RE: E o trem... A minha geração também elegeu o trem – em especial o suburbano: sábado à tarde, vindo; domingo à tarde, voltando – como um de seus hobbies preferidos....
VP: Repito: o trem de passageiros era a menina dos olhos de todos nós. Quem não gostava de ver aquele trem sumindo, até o último vagão, ali no caminho da Raposa? A gente até chorava ao ver o trem partir com as pessoas, os amigos que iam embora... pra São Paulo, pra Fortaleza, pra tantos outros lugares. A gente ficava acenando pras pessoas quando o trem partia. Era qualquer coisa de emocionante.