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COISAS QUE ACONTECEM


ENTREVISTA CONCEDIDA POR VICENTE PINTO – Por áudio (Parte 5)


DE: “REPÓRTER ESSO”

PARA: JORNAL DO PUTIÚ 


RE: Aos 12 anos, convalesci de grave ferimento na região plantar do pé direito (1), sendo muito bem acolhido na casa dos seus pais (a dona Lourdes, sua mãe, era fora-de-série), levado por você para ser zelosamente cuidado pela enfermeira Ednilza ou Elvira, a sua irmã caçula. Acompanhei, então, todo o trabalho que a Edilza, sua irmã primogênita, teve na confecção das camisas do JOSC (Jovens do Oratório Sporting Club), no padrão Vasco da Gama (faixa diagonal na cor branca sobre tecido preto). Fale-nos um pouco desse projeto.

VP: O JOSC era obra minha, do doutor Fernando e do Jaime Carlos. Nós três e um bando de garotos do bairro. Ali, no Oratório, nós nos sentávamos e dávamos palestras para todos eles. Era um barato. Só pra você ter uma ideia, às vezes eu me encontrava com algum menino ali na pracinha do Putiú e dizia: Você vá pra casa, senão amanhã você não joga. Isso era suficiente para o garoto tomar o rumo de casa. Um dia, o Chico Forte chegou em casa e encontrou o Edilvo deitado às 5 e meia da tarde. Ele perguntou pra mulher: Esse menino está com febre? E ela respondeu: Não. Foi o Vicente Pinto que disse que, se ele não viesse pra casa, cedo, pra dormir, amanhã não jogaria. E o Chico Forte replicou: Rapaz, eu vou ter de falar com o Vicente Pinto porque ele está mandando na minha casa mais do que eu. (Risos). O Caretinha era rebelde. A gente dava conselhos... Ele saía andando em cima daquele muro mal feito dos salesianos... aquele muro alto que dava pra rua... O Caretinha andava em cima dele pra fugir. A gente chamava a atenção dele, mas ele não obedecia. Foi um tempo muito bom. O Zé Caetano, o Edilvo, o irmão dele... [Zé Édson], o Meneses, o Ribamar... Esse pessoal todo. Ah, tinha o Tico do Benjamin, o irmão do Manuel que já era um rapaz formado. O Tico, um negrinho áspero demais, fazia miséria. Era gostoso demais. Foi muito bom nessa época. Eu tenho poucas lembranças, por incrível que pareça. Mas nós chegamos a jogar com eles na Aracoiaba. Botaram o segundo quadro para jogar contra a gente. Homens já formados, gente grande, começaram a bater nos meninos. E a torcida deles se revoltou: Como é que vocês fazem isso com essas crianças? É que eles sabem jogar e vocês não... Vocês são pernas de pau... Pois é. Eles foram a nosso favor... Os próprios torcedores do Aracoiaba. Agora, sobre o que aconteceu com você, a gente sabe que poderia ter acontecido com qualquer um. Na hora, o que fizemos com você, faríamos com qualquer um porque isso faz parte da nossa personalidade: sempre ajudar a quem está precisando. Eu não sei se você se lembra, mas eu despejei um litro de verniz no seu pé. Desci até a oficina do seu Zé Raimundo, ali no Putiú, peguei a garrafa de litro de verniz, corri até a sua casa e despejei sobre o ferimento no seu pé. Só que o corte era muito grande; como é que o sangramento ia parar? Já no hospital, a enfermeira perguntou: Quem foi esse maluco? De pronto, respondi: Eu. E ela me repreendeu: Ainda tem a coragem de dizer... Não fiquei calado: Sim, minha filha, eu vou mentir? Por acaso, você quer  que eu negue... que diga que não sei quem foi? Se está certo ou errado, fui eu que fiz. Pois bem. Fiz com você e faria pra qualquer um. E farei, se for o caso, se precisar. O que depender de mim, estou aqui. Disponha do seu amigo.          


RE: Eu lhe sou muito grato por tudo, amigo. Conte comigo também. Isso há quase seis décadas e ainda carrego na região plantar do pé direito as marcas dessa fatalidade. Se alguém me pedisse para indicar nomes de quem dava vida ao futebol do Putiú na nossa época, desembolsando até recursos próprios, eu citaria quatro: Vicente Pinto (você), Antônio Pereira (ou Guariba), Jaime Carlos (o Cara!) e Ribamar Peixoto (o Padim). Você incluiria mais alguém nesse pódio de homens abnegados?

VP: Muitos. Ah, são muitos. O Hélio Silas, por exemplo, era um rapaz que trabalhava na Cerâmica do Adolfo. Gastou muito dinheiro com o time da empresa, sem receber qualquer ajuda do patrão e proprietário, embora divulgasse o negócio dele. Conforme ele mesmo disse, não ganhou um tostão sequer. Ao contrário, o Adolfo tomou o campo deles. Olha, eu não tenho bem a ideia da coisa, mas o Hélio gastava o dinheiro dele. Havia o Zé do Custódio, lá no Candeias; o Padim, na serra do Evaristo; o Océlio, lá no Zé Vilar. Na final entre Madureira e Putiú, o Océlio Vilar chegou às 7 da manhã lá na minha loja e me pediu: Vicente, me arranja aí uma caneta, por favor! Eu arranjei a caneta. Ele pegou o talonário de cheques, preencheu um com vinte contos de réis, naquela época um bom dinheiro, e me disse assim: Está aí, Vicente. É pra ajudar porque se o Madureira ganhar do Putiú, é pra vocês comemorarem. Eu enchi a geladeira de cerveja e a gente devorou tudo. (Risos). Pois é. Havia também o Zé d’Ouro, no Riachão do Panta; o Jajá, dono do time da Ponte Preta, nome tomado de empréstimo da Ponte Preta lá de Campinas, interior de São Paulo. O Jajá, sem poder, gastou muito dinheiro do próprio bolso. Assim, na minha lembrança, são esses. Gastaram muito dinheiro do bolso. Eu gastei um bocado. A gente começa, se entusiasma e, quando dá fé, está metendo a mão no bolso mesmo. Essas histórias nos fazem reviver os bons momentos vividos. E isso é muito prazeroso. Tudo o que fiz até hoje foi de boa vontade. Eu gastei muito com o Madureira, mas não me arrependo. Veja bem. Hoje mesmo eu estava sentado lá na praça da Santa Luzia, quando um dos meninos do JOSC chegou, me abraçou e disse assim: Pai, qualquer dia desses eu vou buscar a minha foto. Na verdade, eu tenho uma foto deles. Agora, quanto tempo faz? Há quantos anos? Mais ou menos uns trinta... E ele, já homem feito, vem até mim, me abraça e me chama de “pai”... Existe gratificação melhor que essa? Duvido!


RE: Retomando, um pouco, a conversa anterior, percebi que, quando você fala sobre o trem, sua voz revela reações de quem sente prazer. O trem também foi uma das minhas grandes paixões de adolescente (2). E a estação! Costumo dizer que a estação é um dos repositórios das minhas memórias. E das suas também, certamente. Quando eu comecei a me entender como gente e sentir atração especial por aquele universo de encontros e despedidas, o chefe já era o seu Murilo, o pai do Hélder, do Assis, da Francisca. E o conferente, lá no Armazém, era o seu Ernesto, pai do Zé Maria, da Etelvina. Saliento que o armazém era bem movimentado. O café, produto de primeira qualidade, proporcionou muitas histórias até porque muitos "ricos" usaram "pobres" para o desvio nas vendas e, assim, evitar a ação fiscal. Essa era uma realidade quando a fiscalização era frouxa, restrita ao fluxo do produto – trem ou caminhão – em cancelas. O que você tem a nos dizer a respeito?

VP: Há pouco eu estava na estação. Exatamente. Fui lá para pedir a um menino que tirasse uma foto minha, eu puxando a corda do sino. Isso me fez lembrar o seu Oscar que tinha um jeito único – para alguns mais críticos, pedante – de fazer isso. A cena era assim um negócio fantástico. Ele era um senhor alto, bem parecido, muito gente boa. Tinha uma pegada forte, uma postura elegante, altiva, quando ia dar as batidas no sino e autorizar a saída do trem. É uma cena que jamais esqueci. Pois bem. Eu revisitei a estação, atual museu ferroviário, com um propósito: ser fotografado ao estilo do seu Oscar. É óbvio que algumas lembranças saltaram pra fora da memória. Algumas historinhas que até nem sei se posso contar. Como você citou o café... O certo é que muitos produtos vinham aqui para o armazém. Milho, feijão, arroz, café em caroço. Houve um desvio de café. Um dos envolvidos me pediu para ir comprar veneno pra rato lá na bodega do Zé Bandeira, que estranhou o fato de um menino... Ele foi enfático: Menino, quem mandou você comprar veneno? Lógico que não me vendeu. Lógico que todos os envolvidos já morreram. É bom que a gente não mexa no que está quieto. Hoje eu estava lá na estação. Lembrei-me da viagem que fizemos – eu, o Eliézer e a Edilza – a Juazeiro no trem dos circulistas; eles não eram tantos que pudessem encher o trem. Então, o Comendador Ananias abriu espaço para quem quisesse acompanhá-los. E nós fomos, mesmo não sendo circulistas. E foi mais gente: o pessoal do seu Holanda, o do seu Lúcio. Uma viagem maravilhosa. Era o ano de 1957. Saímos daqui no dia 17 de janeiro e voltamos no dia 20, exatamente no dia do meu aniversário. Não há como esquecer, né? Concluindo: o trem era a menina dos olhos de todos nós; e a estação, o ponto de usufruto do que de bom ele podia nos oferecer.

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Notas do Repórter:

(1) No meio do meu caminho havia um caco de prato. E ele achou de se alojar no “músculo extensor curto do hálux” (o dedão) do pé direito. Ao ser desalojado causou forte sangramento e graves ferimentos. Nos primeiros socorros, alguém achou de usar pó de café para estancar o sangue. O Vicentinho aplicou verniz. Muita dor e febre alta. Acabei sendo levado por ele ao hospital. Intervenção cirúrgica de pequeno porte. Antibiótico. Convalesci por cerca de um mês na casa dele. Nessa época já não tinha mãe e o meu pai trabalhava em Fortaleza.

(2) As minhas grandes paixões de adolescente: o rio, os campinhos de racha, o patamar e o largo espaço atrás da igrejinha, a pracinha do Putiú, o bar do Meu Santo, o som do violão do Aluísio, o trem e a estação.  


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