ENTREVISTA CONCEDIDA POR VICENTE PINTO – Por áudio (Parte 6)
DE: REPÓRTER ESSO
PARA: JORNAL DO PUTIÚ
RE: Pois é, amigo. Histórias! Nós temos muitas histórias pra contar. Quem não se dispuser a ler o que escrevemos, não sabe o que está perdendo. Nesse emaranhado de vivências, devo declarar que houve uma época, certamente na pré-adolescência, em que eu cheguei a sentir medo do Caretinha e do Pirrita. Você já citou aqui a rebeldia do Caretinha, que era filho do seu Chico Gregório e morava no Alto da Cruz ou do Bode, no popular. Não sei se você se lembra do Pirrita, que, se não me engano, era filho de condutor de trole ou trabalhador de turma da RFFSA e morava próximo ao seu Zé Carneiro, o pai da menina-moça Tereza. Tratava-se, a bem da verdade, de dois jovens socialmente injustiçados que costumavam apelar, exagerar em suas revoltas. Você teria mais alguma coisa a dizer sobre eles?
VP: Sobre o Caretinha, lembro-me também de que ele tinha um filho, o Hermenegildo, que deve ser um rapaz novo ainda. Pois bem. Eu era presidente da Liga e, naquele tempo, a Polícia tinha um time afiliado e isso envolvia toda a corporação. Dos eventos participavam o Tenente, o Capitão... todo mundo... e se faziam acompanhar das famílias... mulheres e filhos, todos ainda crianças. E o filho do Caretinha começou com uns palavrões, em voz alta... algo assim que incomodava todos os presentes... especialmente os que integravam a sociedade. Eu abandonei a tribuna e me encaminhei até ele, ouvindo muitos dizendo: Olhe, lá vem o seu Vicente! Sentei-me ao lado dele e tranquilamente o adverti: Rapaz, não faça isso.... sabe por quê? Os outros ficam mandando e aí você... Ele nem esperou que eu terminasse o que pretendia dizer. Não, seu Vicente! Fui eu mesmo. Disse e repetiu. E eu rebati: Foi não! Você não tem capacidade pra isso. Disso eu tenho certeza absoluta. É a turma que fica estimulando... Ele replicou: É não, seu Vicente! Fui, então, mais incisivo: Que nada, Hermenegildo! Eu tenho certeza absoluta de que isso não sai de você. Eu conheci o seu pai... Apesar de manter-se irredutível quanto a ser o responsável pelo que fazia, comprometeu-se: Não é ninguém, não, seu Vicente. Mas eu prometo não fazer mais isso. A partir desse dia, ele chegava a advertir os outros: Cara, não faz isso, não! O seu Vicente não merece isso, não. Ora, na época, na condição de presidente da Liga, eu tinha ali toda a polícia do meu lado. O tenente Nílton, que era meu amigo, o sargento Rômicy... Se eu dissesse assim: Prendam aquele camarada! Era no ato. Na hora, eles mandariam prender. Mas eu não fiz isso. Achei melhor, mais humano até, partir para o convencimento. Acabei ganhando um amigo. E até os que acompanharam a situação perceberam essa diferença de tratamento. Houve um outro fato. Os meninos jogavam bagos de laranja de um lado para o outro, sem se importar com quem atingiam. Cheguei pra um deles e ofereci uma certa quantia em dinheiro para que recolhesse todos os bagos e me entregasse. Imediatamente mais dois garotos se ofereceram a fazer o mesmo se também eu lhes gratificasse por isso. Eu paguei a apenas dois, dispostos em cada um dos lados da quadra. Logo acabou a brincadeira de jogar bagos de laranja. Tudo depende de como enfrentamos o problema. A solução sempre está em nós.
RE: E o Pirrita?
VP: O Pirrita. Não sei se é o mesmo que eu conheço. Ele virou operador de máquinas. Trabalhou na Prefeitura por muitos anos. Acho até que já se aposentou. Ele era um bom operador de máquinas. Na verdade, ele operava uma pá mecânica, daquelas que removem entulhos, lixos, restos de material de construção. Ele trabalhou na gestão do doutor Fernando, do doutor Ivo, do Olinto, do Clovinho, Bosco Cigano e todos os outros prefeitos. Era um bom operador. Voltando ao Caretinha, sei que ele foi embora pra São Paulo. Por lá, faleceu. Veio aqui uma vez, mas logo voltou. E lá fez a derradeira viagem dele.
Nota do Repórter:
Aproveito o ensejo para transcrever excertos de Reminiscências – Viver para lembrar, texto às páginas 445-451 do meu livro Sinfonia – em prosa – d’uma existência (prodigiosa):
“Assim se teceram os nossos temores que o tempo se encarregou de desfiá-los, de esfiapá-los, de destecê-los”. (...) “Amedrontaram-me as presepadas do Pirrita e do Caretinha, dois jovens que reagiram à marginalização pela sociedade com a embriaguez e a desordem, sempre amparados no hábil manuseio de armas brancas, perfurocortantes: a peixeira e o canivete.” (...) “Com o Caretinha, cujo pai trabalhou como servente de pedreiro em construções de responsabilidade do meu pai, houve até uma certa aproximação. Chegamos a jogar juntos em peladas em campos de chão batido – o Beira-Riacho, à margem da estrada do Coió, e o Gilete, em área contígua à da Escola de Artes Donaninha Arruda, na Feira do Gado. Nunca percebi que tivesse má índole. Era apenas um injustiçado sem conformismo.”