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COLUNA DO PUTIU


SIMPLESMENTE LUCÍOLA

 

Dizendo que precisava espairecer, saí à calçada, caminhei calmamente sob o intenso brilho de uma esplendorosa lua cheia que ornava um céu de múltiplas estrelas, algumas cadentes, e, certamente, encantava corações apaixonados. (Naquele tempo, o romantismo resistia bravamente às mudanças comportamentais que já sinalizavam para um novo tipo de relacionamento humano – menos humanizante, obviamente.). 

Segui até o patamar da igrejinha, a nossa mais significativa vizinha, e sentei-me num dos primeiros degraus da extensa escadaria, construída para amenizar o esforço despendido pelas pessoas que, vindas da parte baixa do bairro, subiam em direção ao cocuruto da colina, à sua área residencial e de fé. 

Ali, sozinho, sob a luz tênue da lâmpada incandescente de um dos postes de iluminação pública, artificial, compensada pela resplandecência selênica, um silêncio ensurdecedor, não se ouvia nem o cricrilar de grilos, entrei em profunda meditação sobre: a feira na manhã do dia seguinte (sábado), hábito por mim adquirido já há algum tempo; a ida, à tarde, ao encontro da minha amada, que viria a ser a minha eterna parceira, com quem compartilharia o fim de semana, a família dela então residindo em Caucaia; as contas a pagar, basicamente resultantes de aquisições de móveis, utensílios e eletrodomésticos com que arrumaria a casa onde iria morar pós-casamento; as aventuras do dia… 

E uma sombra surgiu e cresceu bem ao meu lado. Num ato reflexo, virei-me e vi, surpreso, de quem se tratava: ela que muito raramente aparecia em locais públicos, de onde logo desaparecia, não antes de mexer com os corações de muitos jovens que costumavam se apaixonar facilmente. 

– Assustei você, amigo? 

– Que nada! Uma rainha em passeio numa noite de luar não assusta assim um súdito seu. 

– Posso sentar-me? 

– Sim. À vontade. Será sempre um prazer. 

E ela, saudando-me com um Boa noite!, com voz maviosa, quase cantante, sentou-se à minha direita, de frente pra mim e de costas para o cruzeiro de madeira em base de alvenaria, no mesmo degrau em que me encontrava. Antes, juntou a barra da saia num amontoado que prendeu entre as coxas roliças. 

Ela era uma jovem adolescente com corpo e cabeça de mulher adulta e com histórico de vida de muito sofrimento, de muita renúncia. Filha de pai biscateiro e mãe prendas do lar, a mais velha de um grupo de cinco outros irmãos, era pobre, na essência do termo. 

O volumoso cabelo, de negror que me fazia lembrar a graúna de Alencar, por ele usada para descrever os da bela e brava índia Iracema, ganhava um brilho especial pela ação dos prateados raios da lua que parecia incidirem exclusivamente sobre ele. 

Por cobrir boa parte da testa, encobrir as orelhas, emoldurar os dois negros olhos, de uma vivacidade ímpar, descer em dois grossos cachos até os rijos e hirtos seios já em medianas conchas e esparramar-se pelas largas costas, ele e a cor trigueira da cútis faziam-na assemelhar-se à atriz Yoná Magalhães, no desempenho singular do papel principal de Simplesmente Maria (1970), novela da Rede Tupi de Televisão que invadia os lares cearenses através da TV Ceará – canal 2. 

Pela natureza impulsiva, pela sensualidade espontânea e pelo jeito simples de vestir-se (usava naquela noite a roupa de sempre, ou seja, um esbatido vestidinho de tecido barato, de corte comum e desprovido de apliques, de enfeites, de atavios; nos pés, chinelas japonesas já gastas pelo uso), diria eu ser ela o clone da atriz Sônia Braga em Gabriela (1975), novela da Globo, em que Walcyr Carrasco homenageou, no ano do centenário do escritor baiano fadado a best sellers, Jorge Amado, autor de Gabriela, cravo e canela, obra que então lhe serviu de esteio. 

Agora, se eu lhes dissesse, imprescindíveis leitoras e leitores, que ali, à minha frente, tão próxima de mim que me permitia sentir uma fragrância natural, campesina, como se de nenúfares exalasse, estava uma deusa de rosto maravilhoso, um tanto quanto ovalado e de graciosidade que ninguém conseguiria descrever à plenitude; de olhos negros, vivazes, sob a proteção de sobrancelhas perfeitamente arqueadas; de nariz fino e gracioso, com narinas que se moviam lentamente pela aspiração ardente, sensual; de boca comum – embora os vistosos lábios lhe dessem um leve toque de volúpia – que, ao abrir-se em sorrisos sempre cativantes, expunha dentes brancos como leite; de corpo escultural revestido de pele aveludada, trigueira; de cabelos de azeviche, lisos, volumosos; em síntese, uma deusa, “incrivelmente bonita”; asseguro-lhes que não cometeria exageros, podendo, inclusive, chamá-la de Mademoiselle Marguerite Gautier, a quem o escritor francês Alexandre Dumas Filho incorporou o epíteto A dama das camélias, a cortesã mais charmosa, mais requintada, mais cortejada, mais cobiçada, mais rica, mais endividada e mais infeliz da glamorosa Paris do século XIX, ou de Cynthia, personagem de conto do inglês Aldous Huxley, cujo título do seu nome se apropria, por quem Lykeham, o bolsista da Faculdade Swellfoot, apaixonou-se à primeira vista, ante a beleza deífica da garota que assistia, ao seu lado, a um melodrama em tradicional teatro da época. 

E por que abandonei a diva (nada a ver com a Vênus moderna, a Diva de José de Alencar; mas com a deidade femínea, a deusa do meu bairro que também tinha Os olhos onde a lua costuma se embriagar) e me alonguei tanto nessa tentativa de tracejar-lhe um perfil? 

Eis um questionamento, válido até, para o qual só disponho de uma explicação: trata-se, a bem dizer, de uma fuga estratégica; afinal, enquanto eu espiritualmente me distanciava, ela se mantinha arrebatadora, provocantemente feminil, impondo-me o risco em potencial de tornar-me Limalhas de ferro sob a influência de um ímã

E eu resistia, bravamente resistia, embora sentisse efluir daquele corpo divinal o odor da fêmea em pleno cio. Um artefato bélico pronto a explodir a um mero fraquejar meu. Com um belo e encantador sorriso, ela se insinuou: 

– Professor, é verdade que vai se casar? 

– Sim, é verdade. Já estamos noivos. 

– É com a filha do seu Antônio Guariba? Qual delas? 

– Das moças, a do meio. 

– Sei… a morena. Que moça felizarda! 

– Não. Eu é que sou o felizardo. 

– Professor. – E ela buscou insistentemente o meu olhar. Quando conseguiu, prosseguiu. – Posso lhe fazer uma proposta? 

Eu estremeci. Senti-me numa sinuca de bico. Afinal, o que podia aquela cativante jovem querer de mim? Mas não havia saída. Só me restava aquiescer. 

– Faça-a. 

– Talvez não me conheça muito bem. Mas, com certeza, sabe do meu sofrimento. Nada tenho nesta vida, nem posso lutar para ter, simplesmente porque meus pais não admitem isso. Sou prisioneira da vontade deles. 

– E como você pretende mudar essa situação? 

– Só há uma solução para o meu caso… 

– Qual, menina?! 

– O casamento, professor. E é nesse sentido que lhe faço uma proposta… 

– Não. Não a faça. Não tenho como acolher… 

– Professor, eu lhe garanto que não vai se arrepender. Farei tudo para que você seja feliz. E por quê? Porque só assim eu também serei feliz. Vou poder estudar. Vou poder crescer. Vou poder ser gente, poder viver. Basta, apenas, que, se você estiver de acordo, a gente fuja agora… Você pode me levar para onde quiser… Desejo ser sua… E, então, selamos o compromisso da felicidade eterna, até que a morte nos separe. 

– Menina, por favor! Não sonha o impossível. Não viaja sem passagem. Não sou, não posso ser o seu príncipe encantado. Eu não tenho como lhe oferecer o que você merece. Preste atenção, garota! Se eu a engravido – e isso me parece tão certo nestas circunstâncias –, aí é que selamos o nosso pacto de destruição, de desgraça mútua. Não conte comigo para esse absurdo, para essa loucura. 

– Mas professor… Calma! Você, por acaso, está querendo que eu acredite que não sente nada por mim?! 

– Não é bem isso, amiga. Lógico que eu sinto. De um modo, declaro, agora – se é que ainda não tenha feito isso – a minha saudável amizade por você… 

– E de outro modo? 

– Bem. Como posso dizer? Já sei. Assim: de outro modo, não posso negar que, sendo uma mulher atraente, sensual, insinuante, dona de um corpo perfeito, é lógico que você exerça sobre mim uma forte atração física… nada mais que isso. 

– E isso não já seria um bom começo…? 

– Não. Nenhuma relação homem-mulher que pretenda ser estável poderá alicerçar-se apenas no sexo. Isso é tão pobre quanto perigoso. 

– Quer dizer que… 

– Quero dizer que nossos caminhos não se entrecruzam; que você é uma menina bonita, saudável, inteligente… 

– E pobre, não é?! 

– A pobreza não é uma doença, criatura. É um estado social. Causa sofrimento, eu sei. Marginaliza as pessoas, eu sei. Cabe a você, amiga, lutar por um lugar ao sol, sem se entregar, todavia, ao primeiro homem que aparecer oferecendo-lhe mundos e fundos. Pense em você. Cuide de você. Sinto uma ponta de frustração por não poder ajudá-la; mas acredito que um dia o sol vai sorrir diferente para você, até porque disso já se faz merecedora. 

– Meu Deus! Eu me esqueci do que vim fazer. Lá em casa todos já devem estar preocupados com a minha demora. 

Dizia isso enquanto se levantava. Eu a imitei. 

– Perdão! E o que você tinha de fazer mesmo? – Quis saber. 

– Eu saí para comprar uns ovos e fazer um caldo para os meus irmãos… Acho até que a esta hora não tenha mais nenhuma bodega aberta. 

Já caminhávamos, lado a lado, rumo às nossas casas. 

– Com certeza, não. Mas não se preocupe. Eu resolvo este problema pra você. Em nome da nossa amizade que – acredite! – será eterna. 

– Oh, professor! Você não existe. 

Entrei em casa. Ela ficou me esperando na calçada (– Para  não incomodar as pessoas. – Justificou-se ela). 

Fui até a geladeira, recolhi uma dezena de ovos – produção caseira! –, acomodei-os num saco de papel, daqueles usados para embrulhar pães, e os dei à menina do esbatido vestidinho de tecido barato, com uma observação: 

– Embora estivessem na geladeira, são da produção de hoje. 

– Obrigada, professor. Não leve em conta a minha proposta, apesar de ter sido tão verdadeira. Seja feliz, amigo! 

– Você também, amiga. Juízo! 

Ela sorriu. Era uma menina-moça em flor. E, antes de ir-se, brincou: 

– Veja como o destino é tão ingrato comigo. Num determinado momento, cheguei a crer que ganharia um bom marido. Saio do jogo, com meia dúzia… 

– Não. Uma dezena. – Corrigi-a. 

– … uma dezena de ovos num saco de pães. É o que mereço. 

Rimos, os dois. E eu acompanhei o caminhar dela, bem juvenil, ladeira abaixo, até que um vulto de mulher, sob o brilho natural do luar, desapareceu na esquina da casa do seu Nego Elói. 

E ela era simplesmente Lucíola.


Post Scriptum:

1) Havia poucos dias, dois acontecimentos mexeram com a sociedade putiuense: a assunção do convívio marital da Fátima do seu Chico Onofre com o Dedé do Dinó (em casa simples nos fundos do quintal da casa e comércio do seu Izidoro, onde hoje é a mansão do doutor Fernando) e a inesperada fuga da Fatinha do seu Nego Elói com o Zé Olavo do Paulão.

2) Excerto do conto Simplesmente Lucíola (Sonho, aventura e proposta de perdição), do livro de minha autoria Sinfonia – em prosa – d’uma existência (prodigiosa); págs. 667-682.

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 Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.

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