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COLUNA DO PUTIU


UM SAUDOSO OLHAR PARA O PASSADO *

 

“Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saibas pelo menos de onde vens.” (Provérbio africano).

 

Na minha rede de varandas, acalentado pelo benfazejo sopro de vento que amaina o desabrido calor que nesta época do ano nos atormenta, releio Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, numa não consentida fuga à sensação de vazio ante a necessidade – quase vital! – de escrever, reescrever, ler, corrigir, reler e, por fim, publicar textos que me revelem por inteiro, quando um ser invisível interrompe este sublime e salutar ato de confirmação da minha renitente existência, sussurrando aos meus ouvidos, repetidas vezes: “Cadeira de balanço... Cadeira de balanço... Cadeira de balanço...”

Não, não se tratava de sugestão para que eu abandonasse a tão aconchegante rede, trocando-a pela cadeira da vovó que é preferencialmente usada pela minha eterna parceira. Sugeria, isto sim, que mudasse o tipo de leitura – do romance gauchesco para a crônica carioca; de Érico Veríssimo para Carlos Drummond de Andrade, para quem a cadeira de balanço “favorece o repouso e estimula a contemplação serena da vida, sem abolir o prazer do movimento”. 

Assim, como favorecimento a mais uma opção de prazer na leitura, utiliza-se da Cadeira de balanço para intitular uma coletânea de mais de 70 crônicas, recortes poéticos de suas vivências, um tranquilo e pacato cidadão mineiro, filho de Itabira, no contato diuturno com a beleza efervescente, demasiadamente humana, da “Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil”.

Levanto-me, confio o Érico à minha mesa de trabalho – instrumento indispensável na composição da minha ilha de criação –, vou até a estante e recolho o Drummond, em cuja folha de rosto consta um dado ora bastante interessante: este meu exemplar eu o adquiri no segundo semestre de 1976, tão logo ingressei no Nível Básico do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Ceará, por indicação do professor da disciplina Língua Portuguesa, um respeitável senhor de alvas cãs e semblante sombrio que revelava sofrer de insuperável dor – perdera, em acidente automobilístico, a mulher e a filha única. Desígnios divinos? Dizem que sim.

Retorno à rede de varandas e abro o livro aleatoriamente, com pretensões de releitura ao sabor do vento, sem sequencialidade; a reunião de crônicas nos permite isso. Agora vejam o que me salta aos olhos: Figuras que a gente encontra – Na estrada. Trata-se de uma verdadeira obra de arte, esculpida em mármore pela habilidade de quem, com simplicidade, lapida a palavra. Não revela o nome do ente inspirador; mas isso não se faz preciso. O texto lhe é tão fiel que a imagem se torna visível até ao menos acurado olhar. Na verdade, quem “brinca” na prosa curta de Drummond é “o anjo das pernas tortas” que “assombrava os povos pelo mistério das pernas cambotas, que sabiam bailar e enganar, enganar e bailar”: Mané Garrincha!

Fechei o livro e cerrei os olhos. E uma outra imagem me invadiu o campo sináptico: a foto que recentemente me foi enviada, através de uma dessas parafernálias eletrônicas, pelo meu amigo de fé e camarada José Milton Café de Lima. Retrata o time putiuense, perfilado antes de uma partida de futebol. Refiro-me ao Madureira Esporte Club de Carcará (o zeloso engraxate), Boque (o dono do bananeiral mais desejado daquelas bandas do meu torrão natal), Antônio Guariba (o auxiliar de mestre de linha e, agora, meu saudoso sogro), o Cariola (o jogador com uma mania nunca mais vista – sentar-se na grama a cada chute dado), o Aluízio (o melhor violão/cavaquinho que tive o prazer de ouvir) e Vicente Pinto, o filho (acordeonista de qualidade e vascaíno de coração). Ah! O mascote, naquele tempo com uma função bem diferente da que atualmente executa, era exatamente o Zé Milton, no tempo em que ainda usava calças curtas. Quanto ao tempo, temos aí mais de meio século de vivências. Quanto ao espaço, o campo do Oratório Salesiano, não sei precisar se já sob a direção do padre Manuel, o capelão das estrelas e um bom e santo homem.

Essa foto deu um start na lembrança e me fez caminhar pelo passado, tão rico de vida. De repente, eu me vi assistindo a um dos sempre bem disputados jogos entre esse mesmo Madureira e o time dos Salesianos – alunos e funcionários do colégio (Havia um padre, se não me engano chamado Murilo, que jogava – e muito! – com a batina levantada à meia coxa. Era um meia atacante de muitas qualidades. Acredite, se quiser!). No time dos homens de boa vontade, Aluízio, o hábil ponta esquerda, concentrava todos os olhares de uma torcida apaixonada. No time dos santos, Flávio, o filho do mestre Josué, um ícone do bairro Lajes, e veloz ponta direita, era quem mais se destacava. Os seguidores de Dom Bosco abriram o placar, ainda no primeiro tempo, com gol de quem? Do abençoado Flávio, é óbvio. Na reta final do jogo, os comandados de Vicente Pinto, o filho, empataram o jogo, com gol de quem? Do endiabrado Aluízio, é claro. 

E, quando o aurífero sol já se preparava para entregar solenemente o comando à prateada lua, o espetáculo se encerrou. E todos, então, retomaram à sua vidinha de sempre.

 

* Texto publicado na minha página do Facebook em 28.10.2019.

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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.

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