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COLUNA DO PUTIU


31 DE MARÇO


Pra mim, hoje é um dia muito especial; embora o meu primeiro contato com a ressurrecta humanidade, bem de manhãzinha, o sol ainda com cara de preguiça, de enjoo, de ressaca, após dias seguidos de impositiva e fria reclusão, no ar um suave e persistente odor de mofo, não se tenha mostrado assim tão vivificante. 

Explico. Na panificadora da esquina, a menos de uma quadra da minha casa, onde me ponho a calmamente comprar o essencial para o cotidiano quebra-jejum – o café já posto na mesa – com a minha eterna parceira, que, comprometendo-se a rezar por nós três, já se encontra na igrejinha de São José Operário, também bem próxima ao nosso tranquilo aconchego, onde ainda dorme a minha neta primogênita, de mim aproxima-se um conhecido senhor, antes “mítico” inveterado e ora seguidor meio renegado, e, de pronto, sem mesmo um mero cumprimento – o que me parecia ser óbvio – indaga-me:

– O que comemoramos hoje, ó impoluto cidadão?

E eu, logo que identifico de quem partia tão soturna voz, respondo-lhe com uma certa graça, até para lembrar os bons tempos de nossas convivências etílicas, em agradáveis mesas de bar que, na memória e só nela, resistem à ação do tempo:

– O aniversário do Jackson, o meu irmão.

E ele, não suportando o que lhe pareceu tratamento de deboche, vira a chave, troca de trilhos e, resmungando, desaparece na primeira curva:

– É um idiota. Não aceita ser a verde-oliva o caminho para a definitiva saída do país... – O que mais disse não consigo captar pelo pavilhão auricular já meio desgastado pelo uso.

Pois bem. Cuidemos do que interessa. Por que um dia tão especial, que vá além do natalício de um irmão meu? 

Primeiramente, a data coincide com o Domingo de Páscoa ou da Ressurreição de Cristo que, segundo a convicção de Paulo, uma das vozes filosóficas do cristianismo, sem ela seria vã a fé cristã. E isso torna o evento na mais importante celebração da tradição cristã – em que me constituí como indivíduo –, a qual se aproxima da tradição judaica e a sua simbologia de “passagem” da escravidão para a liberdade, mais claramente expressa em da Morte para a Vida. E esta concepção me envolve e me embala a alma, pois, embora não mais seja católico praticante, não deixei de ser cristão. Assim seja. (Ah, respeito todas as outras profissões de fé, desde que seus respectivos seguidores não as tratem como mercadorias à venda ou como caminhos exclusivos a conduzir a Humanidade à deífica eternidade, até porque, a meu exclusivo sentir, ninguém detém a verdade absoluta nem é capaz de impô-la aos outros). 

Por outro lado, a data já foi festiva, nos tempos em que garbosamente comemorávamos a gloriosa, a redentora, a revolucionária intervenção militar nos destinos da Pátria amada, embora o fato em si tenha-se configurado só no dia 1º de abril de 1964. Nessa data, o presidente João Goulart ou Jango abandonou o refúgio em sua fazenda no interior do Rio Grande do Sul e, acolhendo convite do presidente uruguaio, asilou-se politicamente no vizinho país. 

Daí resultou a vacância constitucional do cargo, impondo-se o ritual próprio de substituição, de que ressurgiu a figura do deputado federal Paschoal Ranieri Mazzili, então presidente da Câmara Federal, que pateticamente aceitou o que dispunha a regra constitucional da época, já em profundo processo de esgarçamento, de deterioração, só que quem na verdade assumiu os destinos do país foi o Comando Supremo da Revolução, composto pelos três ministros militares (Exército, Marinha e Aeronáutica). 

E vieram os Atos Institucionais. E, junto com eles, os atos periféricos que marcaram, à base de tortura e morte nos porões da ditadura, a mais deprimente e vergonhosa página da história pátria. E assim se estabeleceu o regime militar no Brasil.

Só que 1º de abril é popularmente considerado o Dia da Mentira. Ora, quem detém o poder é quem manda. E eles decidiram: o ufanismo devia ser extravasado nos dias 31 de março. E assim aconteceu.

Algumas vezes desfilei vestido com a farda de gala do Ginásio Salesiano, com um GS estilizado em cor vermelha no centro do peito de uma camisa extremamente branca, de malha e de mangas compridas, sobre calça de linho branco, impecavelmente engomada, e tênis alvíssimo. Outras tantas assisti, compenetrado como bom cidadão brasileiro e envaidecido por ter sido, em passado recente, ator figurante de tão deslumbrante epopeia.

Há, infelizmente, o lado oculto, devassador e, no caso, devastador da história. Eu ia completar 12 anos quando vi os olhos do meu pai lacrimejando, sangrando de lágrimas mal contidas pelo temor que a cena envolvia. 

De pé na calçada da casa de esquina com a via aclivosa de acesso à nossa casa no cocuruto do Alto da Capela, nós – ele e eu – assistimos, inertes, ao desfile de jipes do Exército que se deslocavam para Fortaleza, após atuação intimidatória dos verde-oliva, e vimos num deles, algemado, vigiado por soldados armados de fuzis e exposto propositalmente à desejada execração pública, o senhor Aluísio Joaquim de Castro, proprietário da mais importante serraria da região, vereador e ex-presidente da Câmara, cargo que o elevou a prefeito municipal em face da deposição e prisão do senhor Osmar Marinho, o ex-vice e então titular do cargo desde a renúncia do que com ele fora eleito (acho que o jovem político Wellington Viana). 

O caos havia se instalado no topo da política de um município tradicional e metropolitano. E com ele o temor de quem mantinha algum vínculo com os por eles escolhidos e recolhidos. E o seu Aluísio era amigo, compadre e mentor político do meu pai. E o temor dele também era meu.

Graças a Deus, o 31 de março já virou, há muito tempo, um extraordinário 1º de abril.

E, para concluir este registro quase histórico, permito-me transcrever, literalmente, dois excertos de um dos livros da série As ilusões armadas (Companhia das Letras, 2002), de autoria do consagrado jornalista Elio Gaspari. No caso, trata-se de A Ditadura Escancarada, às páginas:

a) 278: “O capitão Maurício Lopes Lima foi buscar em sua cela frei Tito de Alencar Lima, um dos dominicanos ligados à ALN e avisou-o: ‘Você vai conhecer a sucursal do inferno’. Frei Tito foi para a Oban. Apanhou por três dias. Numa das sessões, agentes da equipe do capitão Benoni Albernaz, enfeitados com vestes litúrgicas, mandaram que ele abrisse a boca para receber ‘a hóstia sagrada’. Era o fio ligado ao magneto. De volta à carceragem, frei Tito conseguiu uma gilete e meteu-a na veia do antebraço. Acordou no pronto-socorro do Hospital das Clínicas.”

b) 232: “A essência das ditaduras não está naquilo que elas fazem para se perpetuar, mas naquilo que a partir de certo momento já não precisam fazer.”

Notas do autor:

1) ALN = Associação Libertadora Nacional.

2) Oban = Operação Bandeirante.

3) Magneto = "Geração de corrente elétrica cujo campo indutor é um ímã permanente." (Google).

4) Frei Tito era cearense.

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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.


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