top of page

COLUNA DO PUTIU


ASSIM ERA O MEU VELHO PUTIÚ... (Parte I)


Indulgentes leitoras e leitores,


Eu lhes proponho que imaginem um ser humano detentor de poder absoluto, aí pelos últimos anos da década de 1960, portando drones monitoráveis e munidos de equipamentos de captura de imagens em alta resolutividade, capaz de conduzir sobrevoos por toda a área habitacional do nosso amado Putiú. (Naquela época já não éramos mais os “índios”, embora ainda houvesse alguém que nos olhasse de través.).

É bem provável que vocês questionassem: “Com que objetivos?”. E eu observaria: “Não nos percamos com o que não deve despertar a nossa atenção”. Vocês, então, demonstrariam interesse pelo improvável feito humano: “Que resultados teria ele obtido?”. E eu assumiria o comando da nave: “Aí, sim, é que reside o nosso desejo a ser satisfeito.”

Disponho-me, agora, – creiam-me – a correr um risco em potencial, embora devidamente calculado. (E como eu adoro arriscar-me! Vocês bem sabem disso.). Como se fosse um retratista, um lambe-lambe da época e ora reencarnado, proponho-me a revelar, de forma sequenciada, todos os trajetos então perfeitos por tal indivíduo imaginário, capaz de misturar presente e passado, em imagens, visando a produzir arte.

Se lhes aprouver, comigo estejam descendo a curta e pouco declinável rampa entre a ponte sobre o ora anêmico rio dos camarões (um renitente fio de água serpenteando num largo leito arenoso e vegetação rasteira apenas nas margens), e o velho trilho da rede ferroviária em sua última curva em direção à centenária estação. Usufruamos, então, do prazer inenarrável de adentrar o nosso querido bairro de não menos de cinquenta anos atrás. Agradeço-lhes pela aquiescência do convite.

Sugiro que comigo decidamos por uma trajetória de direita. Nada a ver com política partidária, até porque àquela época vivíamos – recordem-se! – em pleno regime militar e partidos políticos só tínhamos dois: a Arena situacionista, sob as rédeas de comando militarizado e ideário construído pelo poder das armas (“Ninguém segura a juventude do Brasil!”), e o MDB, de Ulisses Guimarães e Tancredo Neves, além de alguns outros heróis da resistência, na condição de desditosos e renitentes oposicionistas. Assim, sigamos sempre à direita, na ida e na volta.

O nosso ponto de partida é, por necessário, a isolada casa comercial e residencial do seu Dionísio, casado com a respeitável professora dona Clarinha, os pais do Dionísio Júnior e do Max; este imóvel será, em breve, o domicílio – também comercial e residencial – do Alfredinho, o pai dos futebolistas conhecidos como Véi e Cueca (Carlos Alberto) e um dos contumazes adversários do Ribamar Peixoto (o Padim) em jogos de sinuca de gaveta no bar do Miguel Pedrosa (o Meu Santo). 

A poucos passos, temos o chafariz público, cuja importância pode ser aferida por dois elementos: a precariedade do então sistema de abastecimento d’água e o tamanho da fila de latas vazias à espera de que jorre tão precioso líquido, potável, pelas suas duas únicas torneiras e por curto espaço de tempo.

Abrem-se, agora e bem à nossa frente, estas três vias públicas, cada uma com características bem peculiares. 

A primeira, bastante é que ora a revisitemos apenas visualmente, em face de ser uma vila de cerca de dez ou doze casas simples, de alvenaria e de parede-meia, todas elas espremidas entre barreira frontal escavada para servir de área reservada à rede ferroviária e a encosta do popularmente conhecido Alto da Cruz (expansão, de relevo mais baixo, do Monte do Cruzeiro), com estreita e malconservada via de acesso de entremeio. Este vilarejo, onde inclusive moram o barbeiro Zé Martins e o seu Nelzinho, cuidador do sítio dos salesianos (canavial e bananeiral, entre a margem do rio e o Oratório), avança até à última casa, construção lateralizada com monólito de grande proporção, a qual serve de residência ao casal seu Toinho e dona Maria, com os filhos Socorro (futura esposa do Dim), Francisco (o jovem estudante salesiano Maninho ou o futebolista Pelé) e Dedé.

A segunda, de pronto demovo qualquer ímpeto no sentido de percorrê-la, porquanto compõe-se de uma rua de tracejado hiperbólico – ou seja, com trajeto em curva aclivosa/declivosa de plano a plano –, margeada de casas simples de alvenaria, de porta e janela frontais, de calçadas em nível e em contraponto com o íngreme leito da via ainda sem qualquer tipo de infraestrutura. Na subida, uma sequência de imóveis, onde residem, por exemplo, as famílias:  

. da dona Vicenza, aguerrida padeira com balaio de pães na garupa de bicicleta, a mãe do Dedé, da Toinha, da Fransquinha, da Lindalva, e sogra do Bento, vendedor da Lojas Pernambucanas, lá no centro comercial da cidade; 

. do craque Zé Caetano, filho de ferroviário aposentado e aluno dos salesianos; 

. do seu Chico Gregório, pai do presepeiro Caretinha, que a ninguém obedece; 

. dos estivadores Zequinha ou Espanhol (zagueiro) e Edmarzão (goleiro), com breves passagens pelo Putiú Atlético Clube; 

. do jovem Zé Correia, também filho de ferroviário aposentado e aluno dos salesianos, que trabalha como auxiliar de gerente no bar do Antônio Guariba; 

. do estivador gigante e valentão Zé da Silva, que será sangrado, por vingança, pelo nanico Cabidela, numa manhã de domingo, lá no bairro Lajes; 

. da fruteira magricela Lúcia Caçota, vendedora de uva ou tangerina a passageiros dos trens; 

. e da prestimosa senhorinha Vaneide, ora parceira da madrinha Núbia, ali no Alto da Capela, em relação que perdurará por muitos anos.

Tal sequência sofre segmentação na cerca de arame farpado que delimita o sítio de propriedade do seu João Mendes, em cuja esquina, já no cocuruto do morro, dá-se a junção de viela perpendicular de acesso à via central do bairro e com alguns diminutos blocos de habitações de gente simples (a família do sapateiro Mosael, as das fruteiras Zizita e Sinhá Caçota (tia da Lúcia), assim como a dos pais do vereador Adauto Alves e a dos irmãos Joaquim e Manoel Croinha, por exemplo). 

Na descida – creiam-me –, o mesmo tipo de ocupação espacial, até confluir com rua de calçamento em pedra tosca que, originada lá na divisa com o Putiú, nas proximidades do templo – Assembleia de Deus – do pastor Zé Fernandes, serve toda a comunidade da Feira do Gado, logradouro que sedia o Grupo Escolar Coronel Estêvão Alves da Rocha, inaugurado há poucos anos e erigido em espaço contíguo à Escola de Artes Donaninha Arruda. Lembremo-nos de que se trata de dois projetos de revitalização de área em processo de degradação ambiental e, principalmente, de oferecimento de oportunidades de formação a crianças, adolescentes, jovens e até adultos residentes em bairro carente de políticas públicas no segmento educacional. Alvíssaras!


“A tiborna mesmo ficando na bagaceira nos acompanha: não tem água que retire esse grude adocicado, nem com sabão da terra, nem com caco de telha, a tiborna não se elimina porque gruda por dentro nos cafundós da alma, nos confins da memória, entre o esquecimento e a lembrança. (...) Não adianta, entretanto, ir morar em Bogotá, fugir no navio do loide, telegrafar de Estalingrado, pois é a tiborna que fala com sotaque afornalhado.” (Batista de Lima, em Um tudo que passa. Tiborna, Imprece Editorial, 2014; às fls. 68-69).  

_____________________________________

Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.

bottom of page