top of page

COLUNA DO PUTIU


ASSIM ERA O MEU VELHO PUTIÚ... (Parte II)


“A memória dos que envelhecem (e que transmitem aos filhos, aos sobrinhos, aos netos, a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com que ele estabelece contatos, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na construção da tradição familiar.” (Pedro Nava, em Baú de Ossos. Companhia das Letras; pág. 39).


Complacentes leitoras e leitores.


A terceira via, esta, sim, nos convida a uma saudável caminhada por rua engalanada com uma extensa sequência de imóveis – residenciais, comerciais e mistos (comércio no primeiro ambiente e moradia nos demais cômodos) – todos, sem exceção, construídos ao longo do sopé do multicitado Alto da Cruz. Daí resulta um trajeto com sinuosidades a respeitar tal tipo de relevo, com quintais em incontornáveis aclives, alguns até bem acentuados e com graves problemas de escoamento das águas pluviais em época de fortes chuvas. 

Como é possível perceber, as frentes das edificações – sem padrão único e de variegadas cores; por isso este colorido especial na imagem vista em bloco – se voltam para a avenida de leito em calçamento de pedra tosca, a qual, embora com diversas denominações, nasce no alto da serra, passa ao lado da igreja Matriz, toca levemente o Pelourinho – símbolo histórico da cidade –, margeia o Paço Municipal, corta o coração econômico-financeiro da cidade, separa ao meio o núcleo educacional confiado aos filhos e filhas de Dom Bosco, cruza o rio dos camarões e, depois de se despedir do bairro onde ora estamos, transforma-se em estrada estadual (CE 060, se não me engano), atravessa a localidade do Sanharão (então tida como “de perdição” pelos religiosos e conservadores, por conter a área do “baixo meretrício”) e, finalmente, destina-se à capital cearense.

Caminhemos, então, pelas suas calçadas irregulares, brincando de identificar alguns desses imóveis, enquanto avançamos logradouro adiante. 

O da esquina – novo, de um único ambiente e com função pública – abriga possante motor a óleo que, sob a responsabilidade do artífice versátil Zé Mino, fornece eletricidade a todo o bairro; de forma precária, recordemos, porque por apenas algumas horas noturnas. Tal problema só terá solução definitiva quando chegar até nós a “energia de Paulo Afonso”, referência à hidrelétrica instalada em reservatório construído com tal fim no rio São Francisco e entregue à administração da Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) que, através de convênios, repassará o gerenciamento e a manutenção para companhias elétricas que serão criadas pelos governos dos estados então beneficiados (no Ceará, a Coelce, cujo Escritório Regional, será sediado na avenida Proença, próximo à igreja Matriz, e zelosamente conduzido pelo senhor Bernardo, líder autêntico e politicamente correto.

Não nos percamos em meio à História, pois ela é longa, longuíssima. Prossigamos pelas calçadas irregulares. Continuemos catalogando alguns pontos de referência, tais como:

. a mercearia do João da Alda do seu Holanda;

. estreito imóvel de única porta ora fechada, brevemente abrigará a barbearia do seu Zé Martins;

. a residência de um solitário e recluso casal de idosos, aparentemente por moto próprio, mas que produzem e vendem saborosíssimo doce de leite caseiro em barrinhas, além de não menos gostosos docinhos coxas de moça tipicamente cearenses;   

. a casa onde morou o casal de enfermeiros dona Dionísia e seu Ernesto, ele sargento reformado do Exército, os pais da menina Wildima, e agora reside o casal seu Chico Alves e dona Nozinha, recentemente vindos lá do Alto da Cruz, vizinhos que eram do seu José Gertrudes, o pai de Joaquim e Manoel Croinha, que também vestem a briosa camisa do Putiú Atlético Clube;

. a da família do agente ferroviário Jaime Pereira Carlos (o Cara!);

. a do casal seu Zé Holanda, gerente da agência da Empresa Redenção, com sede defronte à praça de Santa Luzia, e dona Adamir, irmã de dona Núbia, minha madrasta e madrinha; eles são os pais do Josemir, da Fátima e da Lúcia; 

. a do retratista Manuel Matias, pai da jovem Iracema que assumiu a criação da menina Wildima (vai tornar-se uma bela jovem e  casar-se com o José Luiz, irmão de Erenise, futura funcionária da Coelce e, em seguida, do Banco do Brasil); ele é irmão do seu Vicente, agente de endemias rurais vinculado ao DNRu (Departamento Nacional de Combate às Endemias Rurais), e do Assis da Maria, filha do seu Porfírio e irmã do Inácio, a qual, morando do outro lado do rio, sustenta uma penca de filhos lavando e passando roupas de quem consegue pagar pelo serviço;

. o comércio “tem de tudo” do seu Chico Pequeno, cujo balconista é o “cavalheiro” Teodósio, que será substituído pelo distinto e cortês Nicodemos;

. a casa das irmãs solteironas, alfabetizadoras e catequistas – Alice, Ester e Graziela – que produzem um bom alfenim, apesar de alguns procedimentos pouco recomendáveis;

. o bem tratado jardinzinho na recuada entrada do café da senhora Mundica, esposa do soldado João Martins, ora compondo a guarnição policial de Capistrano; na frente, o pouco espaçoso salão de barbearia do paraibano Zé Martins (que logo vai mudar-se para prédio vizinho à bodega do João da Alda), o pai do pandeirista Tiquinho, do policial João Martins e da enfermeira Adelita;

. o bar, lanchonete e salão de jogos (incluindo o bilhar) do seu Antônio Pereira (ou Guariba);

. o bar e residência do casal seu Édson Víctor e dona Agenora do Carmo, os pais de Edilene, Eliene, Ermilson (futuro empresário e dono da Eletrônica Putiú) e do Edvan; 

. o ponto comercial do seu Raimundo Cândido e os seus saborosos sonhos e suspiros (que vai ser ocupado pelo restaurante da Ladir do seu Mário Gustavo, pai do Popó e do Tica).

Percebam, diletantes leitoras e leitores que ora me acompanham nesta jornada no passado, haver, aqui, um pouco acentuado desvio à direita – não chega a formar uma esquina, mas abre um estreito distanciamento (que se reduz à medida que avançamos) do leito da avenida entre este lado residencial/comercial e a pracinha símbolo do bairro  – e suave elevação de nível do piso das calçadas. Quem introduz esta curta diagonal no nosso trajeto é a bem sortida mercearia do seu Leonardo (por trás, há um salão de jogos – de acesso restrito e através de estreito corredor lateral –, tendo uma grande pedra aos fundos); esta casa residencial com área coberta na entrada, recuo ajardinado, muro baixo frontal e estreito portão de ferro de acesso, compõe o seu complexo patrimonial. Em breve, com a aposentadoria do atual dono, quem vai se estabelecer aqui, na parte comercial, é o jovem Edmilson do seu Osório (lá do Coió) e irmão do Dim, futuro marido da Socorro do seu Toinho e ora dono de açougue de carne de criação e de suínos mais adiante localizado.

Vejam que, agora, o percurso retoma o formato retilíneo e de igual nivelamento do piso, aqui no misto de comércio e residência do casal Adauto e Zilma, onde podem ser adquiridos torresmos de boa qualidade. Vêm na sequência:

. a casa do casal seu Chico Onofre e dona Zenaide, ele aposentado da RFFSA, os pais da Graça, da Fátima e do Cristóvão;

. a do casal seu Zé Raimundo, dono de oficina mecânica, e dona Roquelina (ele, após enviuvar-se vai casar-se com a moça Cesarina, de família lá pras bandas do Caio Prado); acrescento que quem depois vai aqui habitar é o casal seu Vicente Matias e dona Nicinha, os pais do Elias, que poucos anos após tornar-se marido da minha irmã Eliane, fenecerá em incidente com abelhas em trilha da rede de alta tensão aberta na serra, em pleno exercício da função que ocupará na Coelce);

. a birosca do Américo do seu Henrique, enfermeiro e motorista do Samdu, o Serviço de Atendimento Médico de Urgência; (este imóvel será derrubado e reconstruído para sediar o novo comércio do Dedé da dona Maria Lima, respeitável professora da Escola de Artes e do Grupo Escolar situados lá na Feira do Gado;

. a casa do auxiliar de mestre de linha seu Antônio Pereira e esposa, dona Lúcia, os pais do Antônio Filho (o Caxangá), do Álcimo, do Ari e do Ayres, assim como da Mariete, da Marileide, da Marilene e da Mônica; bem em frente, um frondoso pé de castanhola, guardador de muitas vivências juvenis; quando essa família se mudar para Caucaia, quem virá aqui residir é a do seu Luiz da tradicional Farmácia Mattos;  

. a do conferente de cargas da RFFSA seu Ernesto, casado com dona Albertina, os pais do Zé Maria e da Etelvina;

. a do seu Daniel Pedrosa, irmão do seu Chico e do Miguel (o Meu Santo), e gerente da fazenda do doutor Marcelo Holanda (quem nela vai morar, em breve, é a dona Ester, cunhada dos três, mãe da moça Socorro, com quem convivem a jovem Meyre (futura esposa do Antônio Jaime do seu Zé Paulino, mais conhecido como Boc) e a menina Diana – filhas de Daniel –, o Edísio, o Joaquim e o Nonato, este um dos torcedores-símbolo do Putiú); 

. o sobrado onde morou a família do seu Henrique do Samdu que recentemente mudou-se para o Alto da Capela; após reformado, este imóvel tornou-se a mercearia – no piso – e a residência – nos altos – do seu Pedro Miséria e família. Assinalo que este ponto se tornará uma referência no comércio local pela inegável competência, no ramo, do seu proprietário.

Verifiquem que aqui ocorre um outro leve desvio à direita, sem também formar uma esquina. Agora, quem nos convida a prosseguir é um trajeto em linha reta que, iniciando-se neste estreito e simplório imóvel em que residiu a petisqueira Loura, mãe do Tim, da Oscarina e da Socorrinha, estende-se até o nosso primeiro limite desta aprazível jornada. Prossigamos, portanto, com o nosso processo de catalogação:

. o recentemente instalado açougue de carnes de criação e de suínos do Tim do seu Osório, lá do Coió, irmão do já aqui citado Edmilson; 

. este imóvel de portas cerradas será, em breve, reformado e ocupado por projeto de farmácia do novel médico doutor Fernando, posto sob os cuidados do seu irmão Perboyre;

. a casa da matriarca dona Sinhá, a irmã do seu Vicente Pinto e a viúva que não tem papas na língua, e dos filhos: a jovem Nicinha, que logo vai esposar o agente de endemias rurais Vicente Matias; a graciosa menina-moça Lilica, cuja aparentemente frágil beleza encherá de encantamento os nossos joviais olhares de respeito e admiração, mormente quando, para contemplar o que se passa fora do seu mundinho particular, se debruçará, sorridente e cativante, no peitoril desta larga janela a emoldurar-lhe a incontida graciosidade; o Edson, cujo  coração balança entre a enfermeira Neném, irmã do Agenor do Carmo, e a Helena, irmã do Adolfo Erick, (embora seja do domínio público o seu mal resolvido relacionamento com a Valdinar, menina-moça declaradamente insubmissa à situação econômico-social que lhe é profundamente desfavorável); e o Edmilson, que vai casar-se com a filha do seu Zé Cândido, carpinteiro lá das Lajes e colega do mestre Expedito, o meu pai, no Posto Agropecuário, lá no Coió).             

. a moradia do casal mestre Zuca e dona Maria, pais de cerca de uma dezena de filhas; a família recentemente se mudou da casa em frente, vizinha de parede-meia da oficina mecânica do seu Zé Raimundo;  

. esta casa – de porta central, duas largas janelas laterais, degraus de acesso, reduzida profundidade e quintal aclivoso devido ao avanço da encosta do Alto da Cruz – pertence ao casal seu Antônio de Sousa e dona Carminda, ele é agente de endemias rurais, popularmente conhecido como “mata-mosquito”, e dono de sítio lá na Gitirana, tido como “mão-de-vaca”, pois vai até lá, em quase todas as tardes, ao pé da porta do ônibus para não pagar passagem, e volta, à tardinha, sempre de carona; eles são os pais do Manuel, do Alberto e do Celidônio;

. a oficina do ferreiro Zé Fernandes que, depois de reconstruída, vai tornar-se residência da família do seu Heitor, técnico da Teleceará e pai do Eronildo e do Leandro;

. a moradia do seu José Almino, o pai do padre Luiz Carlos e já em avançado estágio do mal de Parkinson (em breve, virá morar aqui a família Pinto Franklin, sob a liderança da matriarca dona Sinhá).      

Avancemos um pouco, o correspondente a estas quatro pequenas habitações – uma delas já servindo ao aspirante de comerciante, recentemente saído do sertão, o Dedé, irmão do seu Pedro Miséria –, e agora estamos bem à frente da casa onde mora a família – os pais e irmã – do Adolfo Erick de Menezes, futuro industrial e proprietário de cerâmica às margens da CE-060, também na Gitirana, e político putiuense (vereador, irá candidatar-se ao cargo de vice-prefeito). É seu vizinho o comerciante capistranense seu Edmilson, recentemente aqui estabelecido, que, com mulher e filhos pequenos, reside nos cômodos internos do imóvel.

Andemos um pouco mais e eis o casarão que, mesmo precisando de uma boa reforma, destoa de todas as outras edificações pela imponência da altura da frente e platibanda, das duas portas laterais e duas janelas centralizadas, pela forma semicircular dos degraus de acesso ao piso de todo o prédio em nível mais elevado que a calçada e o leito da via pública, bem como pelo pé-direito alto dos seus cômodos. Nela, pelo que consta, residiu um senhor – acho que de nome Apolônio – de muitas terras, provavelmente onde se assentou todo o bairro, a quem se devia pagar laudêmio em todos os negócios envolvendo imóveis nelas construídos. Pelo que sabemos, esse latifundiário mora com a família em Fortaleza. Ele ou familiar dele vai pretender interditar a área do campo de futebol da Manga. O processo vai evoluir e a Prefeitura Municipal vai dar solução definitiva ao caso.  

Sigamos adiante e passemos em frente: 

. ao comércio e casa do Manuel Passarinho, onde se compra um dos mais saborosos torresmos do bairro;

. à residência da família do jovem Pirrita, cuja rebeldia torna-o diferente dos demais da sua geração; é filho de funcionário da RFFSA, egresso da recente extinta RVC; 

. ao comércio e casa do casal Zé e Maria Carneiro, os pais de Teresa, do “Cearense” e do Miguel, onde se produz o mais requisitado tijolinho de coco do bairro e adjacências.

Deparamo-nos, agora, com uma estreita abertura – a única de todo esse trajeto – para a viela que, lá no cocuruto do Alto da Cruz, faz junção perpendicular com a via hiperbólica a que nos referimos na descrição da segunda via; como vemos, trata-se de uma passagem restrita a pedestres e eventuais ciclistas.

Retomando a caminhada e a identificação dos imóveis em sequência, temos:

. já na esquina, esta bodega cujo dono não conheço e acesso nunca tive; acrescento, apenas, que ela vai pertencer ao Adolfo Erick, mas vai ser tocada pela mulher, dona Vilani, e pelo filho adolescente, Adolfinho;    

. a residência do casal seu Nelson e dona Ester, os pais de Iolete, Marlene e Antônio Luiz;

. a barbearia do seu Juarez, a tranquilidade e simplicidade em pessoa, situada em imóvel que também se destaca dos demais pelo pé-direito alto de toda a edificação; ressalto tratar-se de “barbeiro das antigas”, cuja cadeira de atendimento à clientela é, ainda, de madeira, embora de encosto reclinável; 

. a moradia do casal seu Zé do Carmo e dona Adalgisa, os pais de Zé Aílo, Edmir (o Bibi), Hélio (o Corró) e Codó, os três últimos, habilidosos com a bola, vestem ou vestirão a já tradicional camisa do Putiú Atlético Clube;

. a da família da formosa menina-moça Lúcia Portela – irmãos menores, o pai biscateiro e a mãe prendas do lar.

É bem por aqui, parceiras e parceiros deste improvável passeio, que passa a linha imaginária e demarcatória, a impor limite ao bairro Putiú. 

A partir da modesta casa de muro baixo do seu João Carão, à frente frondoso fícus benjamina que dá proteção à sua carroça de fretes, começa a Feira do Gado, embora a sinuosa sequência de imóveis prossiga em curva para a direita e sem interrupção, logo após o templo evangélico do pastor Zé Fernandes, pai do jovem Cabral – que, pela personalidade excêntrica e agitada, compõe a versão putiuense do que vai ser o Menino Maluquinho, criação do cartunista Ziraldo Alves Pinto – e da oficina do seu João Virgínio, até o comércio e residência do seu Paulão, pai do Zé Olavo, ponta-direita do Putiú. 

É lá que ocorre a confluência da rua de trajeto hiperbólico sobre o Alto da Cruz com a de calçamento em pedra tosca, via principal de tal logradouro, a qual, após um recuado vilarejo de cerca de uma dúzia de casas modestas e protegidas por uma fileira de ficus benjaminas, a área do Matadouro Público (popularmente conhecido como Matança), sob o comando dos irmãos Lázaro e Luizinho, e a bifurcação com estrada carroçável de acesso à localidade do Mucunã, converge para a CE-060, na esquina e à esquerda a icônica bodega do seu Manuelzinho, outro torcedor-símbolo do tricolor do bairro, e, à direita, terreno onde se instalará um posto de combustíveis.

Permitam-me sugerir uma parada estratégica, antes que empreendamos a caminhada de volta. Agradeço-lhes pela aquiescência da proposta. 


“Aqui eu podia pôr ponto. Para tirar o final, para conhecer o resto que falta, o que lhe basta, que menos mais, é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada à-toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdicei palavras.” (Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas, consagrada obra de Guimarães Rosa; à pág. 270).

_____________________________________

Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.


bottom of page