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COLUNA DO PUTIU


ASSIM ERA O MEU VELHO PUTIÚ... (Parte III)

          

“De tempos em tempos retorno / ao sítio em que brotei / árvores mais ralas / pessoas mais velhas / tudo despencando / e o tempo rindo / com sua fome roedora.” (Batista de Lima, em Retorno, poema à página 52 de Tiborna. Imprece Editora: Fortaleza, 2014).


Benevolentes leitoras e leitores.


   É perceptível o deslumbramento que ora afeta todos nós, ante tudo o que até agora nos permitimos ver. Afinal, através de imagens capturadas pela inacreditável ação de um incerto operador de drones, ora revisitamos alguns dos mais importantes espaços em que se ambientaram as nossas peculiares vivências, em passado distante, quando ou éramos adolescentes ou já, no desabrochar da maioridade, começávamos a assumir o protagonismo das nossas narrativas cidadãs, cujo revestimento era a responsabilidade em todos os atos que cometíamos. E tudo isso ora nos leva a remexer, a revirar o que ainda dormita em nossos respectivos baús das memórias. E tudo isso nos causa até uma agradável – embora passageira, admitamos! – sensação de rejuvenescimento.

Há um provérbio africano que nos propõe a, se ainda não sabemos, de fato, para onde estamos indo, que volvamos o nosso olhar para trás e nos certifiquemos de onde estamos vindo (1). Em verdade, em verdade lhes digo que não podemos negar o real significado dos nossos passados na construção das nossas atuais existências. Não nos furtemos, pois, ao entendimento de que somos o que fomos. A árvore frondosa só oferece sombra e frutos porque assentada em um bom conjunto de raízes, não apenas lhe fornecendo o alimento vital, mas também a certeza de que se manterá firme ante as mais agressivas intempéries.

Pois bem, conterrâneas e conterrâneos, ora em grupo virtual da contemporaneidade. Concluída a nossa caminhada de vinda até aqui pelas irregulares calçadas da extensa e sinuosa sequência de imóveis que formavam a estrutura física do nosso querido Putiú de uns cinquenta e poucos anos atrás, convido-os agora a fazer o percurso de volta, do retorno ao nosso ponto de partida, lá na ponte sobre o ora anêmico rio dos camarões (2).

Assim, proponho que atravessemos o leito de calçamento em pedra tosca da principal artéria de mobilidade humana do bairro e nos encaminhemos para o lado oposto ao que ora nos encontramos. É até admissível que vocês me indaguem o que ainda tem a nos oferecer o imaginário ser dos drones que, em sobrevoos, capturam no presente imagens do passado. E eu os estimulo a, num primeiro momento, sentir o prazer de, a pé, atravessar o portal de entrada e saída desta metropolitana cidade pela perspectiva do sertão.

Por esta artéria flui o plasma que dá vida a toda esta secular urbe, incrustada numa natural concha de serras , morros e colinas; por aqui dimana o seu trânsito veicular, com fluxo que bem caracteriza o tempo que ora revisitamos; portanto, é por aqui que trafegam, além de bicicletas e carroças de tração animal, tratores movidos a óleo diesel com reboques de carroçarias de madeira, jipes de duas ou quatro portas, as recém-lançadas peruas de duas portas denominadas Rural Willys, as caminhonetes, os caminhões de transporte de cargas ou de pessoas (os populares paus-de-arara de uso mais frequente em dias de feira ou em noites de festas religiosas) e os ônibus da Empresa Redenção que cobrem a rota diária intermunicipal e competem com o trem já sob nova roupagem (recolhida ao velho baú da história a centenária RVC, agora reveste-o a modernosa RFFSA).


E o que agora vemos, amigas e amigos? À nossa direita a verdejante várzea, popularmente conhecida como a Vazante do Juarez, um vale por onde escorrem as claras e tranquilas águas do riacho Mucunã, em cujas entrâncias, onde se formam poços poucos profundos, os moleques se divertem pescando de anzol e isca de minhoca nervosos corrós, esfaimadas traíras e escorregadios muçuns. É aí também o palco ideal para que alguns mais ousados façam “sem-vergonhices” de todo impublicáveis, as quais, se os pecadores, sob drama de consciência, ajoelhados e contritos, buscam no confessionário o perdão divino, certamente o que conseguem é o enrubescimento das faces do sacerdote de plantão (Não os perdoeis, ó Senhor! Eles sabem o que fazem.).

Deixemos para trás esta imagem porque à frente, em recuo de uns dez metros, área por onde se prolonga o calçamento da via trafegável, surge uma vila de cerca de umas vinte casas, todas em alvenaria, mantidos os padrões das que até agora vimos, tendo como aparato de proteção frontal contra os vespertinos raios solares, uma fileira de árvores de médio porte plantadas ao correr do meio fio – são, como é possível perceber, ipês amarelos, algarobeiras e castanholas. 

Atentemos para o fato de que, identicamente à sequência sinuosa de imóveis do lado de lá, todos construídos ao sopé do Alto da Cruz, as edificações do lado de cá avançam, na retaguarda, pelas encostas do Alto da Capela. Logo, os quintais são ladeirentos, em acentuado aclive, e este segmento de via, até a praça de três módulos, mantém-se na calha de um vale. O  relevo de Baturité é bem propício a isso.  

Sigamos, sem demora, pelas suas calçadas de cimento caraquento e pouco escorregadio e logo notaremos que o vilarejo se alonga desde a residência do fiscal estadual e celibatário Agenor do Carmo, irmão da enfermeira Neném e tio dos meninos Wanderberg e Carlos, até a do seu Nego Elói, ferroviário responsável pelo galpão das máquinas, o pai do Dé, motorista de carro de praça, do Wilson e da Fatinha. 

Aqui, nesta casa, reside a família do casal seu Juarez, o barbeiro e usufrutuário da várzea verdejante, e dona Fransquinha, os pais do craque versátil Juarezinho e das discretas jovens Iracema, Lúcia e Sônia. Já nesta mora o seu  Chico Pedro, pai do zagueiro Meneses e do felídeo Naldo (atualmente exerce o cargo de técnico em radiologia no Instituto José Frota – IJF, no centro de Fortaleza). Estamos, presentemente, defronte da que hanita a família dos artesãos – pai e filhos – seu Valdomiro, Nivaldo e Nílton (Sapacu), que produzem malas de todos os tipos e tamanhos, postas à venda em feiras baturiteenses, aos sábados, e pacotienses, aos domingos. Assinalo que, infelizmente, os dois primeiros vão perder a vida em trágico acidente lá na serra, nas proximidades do vale em que repousam as tranquilas águas do açude Tijuquinha, o qual vitimou mais de uma dezena de feirantes que retornavam de Pacoti, no começo da tarde de um domingo e feriado da Independência.    

Ultrapassemos esta estreita, curta e esburacada rampa de acesso à igrejinha de Cristo Redentor (3), ainda sem piso de calçamento. Na esquina temos a bodega – com duas portas frontais e uma lateral – e moradia da família do seu Izidório, a que se segue a residência do casal seu Chico Pedrosa e dona Alaíde, donos de café e restaurante defronte à estação ferroviária e pais da recatada Elita, do Elialdo (também motorista de carro de praça), da Edivan, da Erivan (a Pipia) e do Carlos (garoto com perfil de craque). Percebam que, neste ponto, as abas da colina na retaguarda destas habitações as empurram para frente, aproximando-as do leito da rua.  

Este muro protege o amplo quintal, que se estende pela encosta do Alto da Capela, com algumas árvores de pequeno porte, touceiras de bananeiras e de cana de açúcar, além de poucos pés de goiaba amarela e miolo vermelho; em cercados de varas atrás da casa, há carneiros, ovelhas, bodes, cabras e suínos à espera do abate; na parte mais elevada do terreno, plantas de flores aromatizantes – algumas já se enroscando nas estacas e fios de arame farpado da cerca à margem da via de acesso à igrejinha e seu entorno – dão  um certo embelezamento à área; na esquina, o misto de comércio – venda de galinhas caipiras, criações e suínos abatidos – e moradia do casal seu Chico Forte e dona Onélia, os pais do Edilvo (jogará como lateral esquerdo na boa equipe suburbana do Vila Manuel Sátiro, bairro da Capital, a qual, no futuro, vai profissionalizar-se, tornar-se o clube Floresta e disputar competições estaduais e regionais), do Zé Édson (goleiro arrojado) e da senhorinha Edísia (costureira à mancheia, identicamente à mãe); um dia, a família se mudará para Caucaia e quem vai nesta esquina residir é o grandalhão seu Sebastião (Gago) e esposa, dona Zilda, os pais do Francisco (o Cicinho) e da Merba, que contrairá núpcias com o Daniel da RFFSA.

Nada é mais oportuno que aqui façamos uma outra parada estratégica para um necessário descanso, de recuperação de fôlego ante o que ainda vamos ter de percorrer, bem como para a prazerosa apreciação do que realmente representa para todo o bairro a igrejinha de Cristo Redentor, com a sua imponente simplicidade incrustada no cocuruto desta discreta elevação em relevo de topografia acidentada, caracterizado por constituição montanhosa com desníveis acentuados.    


“O sobrado era simples, de três andares, com as paredes descascadas que um dia já tinham sido pintadas de verde, a fachada, contínua, com os sobrados vizinhos, diferenciada apenas por duas longas rachaduras de cima a baixo, seguindo a linha das paredes internas de meação.” (Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor. Editora Record, 2019; pág. 257).                                


Notas do Autor:

(1) “Quando não souberes para onde ir, olha para trás e saiba pelo menos de onde vens.” (Provérbio africano).

(2) Conforme o pesquisador e historiógrafo baturiteense Pedro Catão, em estudo publicado na Revista do Instituto do Ceará, em ano da década de 1930, a denominação indígena do rio é Poty’ú (Poty, de peixe; e ú, de água).

(3) De Cristo Rei na denominação popular e na nomenclatura paroquiana, contrariamente ao que indicam elementos históricos bem fundamentados, incluindo o citado na Nota (2) acima, para os quais a imagem que motivou a construção da igreja era/é de Cristo, o Redentor.

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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.


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