NEM FAROESTE, NEM POLICIAL
Entre a casa de fachada alta e três portas, duas delas com balaustradas em mármore, à frente frondosa castanhola – árvore também conhecida como amendoeira de sete copas ou chapéu de sol – com rústicos bancos de madeira ao redor do tronco, residência do auxiliar de mestre de linha, e a de platibanda vistosa, porta de duas folhas, superior e inferior, e apenas uma janela de duas bandas laterais, em que morava o agente de endemias rurais, destoava um velho imóvel, carente de reformas, duas portas simples, sem janelas, coberto de telhas escurecidas pela ação do tempo, de cumeeira alta, declive frontal e águas pluviais caindo na calçada, com dupla destinação.
O primeiro ambiente com função comercial: balcão de madeira em “L”, a parte mais comprida servindo à bodega, no centro uma balança de dois pratos e pesos de ferro de vários tamanhos e no canto da parede uma pilha de papel de embrulho; a mais curta servindo ao boteco, copos de vidro de borco sobre porta-copos, alguidar com água, abridor de garrafa pendurado em prego na parte interna do tampo do balcão, encimando o espaço reservado a unidades, já abertas e destinadas à venda em doses, de aguardentes (Triunfo e Estrela, principalmente), conhaque São João da Barra, vermute Cinzano e “zinebra” (corruptela de “genebra”); além de prateleiras – tábuas dispostas sobre suportes fixados na parede de reboco e pintura a cal –, uma pequena mesa com gaveta e cadeira, e uma velha geladeira GE.
Os demais ambientes eram cômodos para residência, todos vazios, por falta de inquilino e de uma boa reforma.
Era a birosca do Américo do Henrique.
Ali nos encontrávamos – eu, Toinho, Sabará, Bibi, Corró, Zé Olavo do Paulão, Verçosa, Menezes e mais alguns jovens cujos nomes ora me fogem à lembrança –, numa noite fria de segunda-feira, o mês quase findando, o dinheiro tão curto quanto rabo de preá.
O clima agradável, depois de uma tarde chuvosa, estimulou-nos a fazer a “resenha” na calçada, sentados em tamboretes cedidos pelo comerciante, tão jovem quanto nós, que, tão logo percebeu que naquela noite nada venderia, conosco enturmou-se. A conversa se espichou por longas horas.
Já eram quase onze. De repente, o Américo nos indagou com um certo interesse:
– Algum de vocês conhece alguém que queira comprar um revólver?
O Bibi, o mais espirituoso da turma, retrucou com ar de troça:
– Agora virou vendedor de berro? Cuidado com a polícia…
– Não, cara. É que eu recebi um trinta e dois por conta de uma dívida antiga. Preciso vender pra fazer dinheiro, entendeu? – Explicou-se o bodegueiro.
– E onde está a preciosidade? – Interessou-se o Zé Olavo do Paulão.
– Vou buscar. – Ao dizer isso, o Américo dirigiu-se ao interior do comércio, logo voltando com a arma em punho, em posição de tiro, para o assombro de alguns. – Calma, pessoal! ‘Stá sem munição.
O objeto passou de mão em mão, todos avaliando detidamente as suas qualidades – as da arma e as próprias, como eventuais atiradores. E o “brinquedo” retornou ao Zé Olavo do Paulão que, de pé, enfiou-o no cós da calça, encobriu-o com a barra da camisa, gracejando:
– Crianças, eu vou dar um susto naquela turma. – E apontou para o lado da pracinha.
Com efeito, na outra margem da via transitável, estendia-se a pracinha de três planos, com iluminação que mal dava para o gasto.
No plano de maior movimento, ao lado do bar do Meu Santo, o generoso e paciente Miguel Pedrosa, e às margens da via de acesso ao Coió e adjacências, também de calçamento de pedra tosca, cerca de vinte pessoas, acomodadas em cadeiras, bancos e até no piso cimentado, assistiam, em completo silêncio e pela tela em preto e branco do único televisor público do bairro, a um filme transmitido pela TV Ceará, canal 2, afiliada à Rede Tupi de Televisão, dos Diários Associados.
E o Zé se encaminhou para lá. Atravessou a rua, passou pelo menor e mais aclivoso dos planos, de um único banco de concreto, seguiu naturalmente até o pedestal do televisor, aguardou pelo intervalo comercial e, ao perceber que todos se desligaram momentaneamente das imagens televisivas, postou-se diante daquela gente como se cowboy americano fosse, indagando em voz alta:
– Vocês estão assistindo o quê?
Muitos responderam:
– Um filme.
Alguém até complementou:
– A fúria dos sete homens.
E o Zé quis saber:
– É policial?
Alguns esclareceram:
– Não. É faroeste.
Então, o Zé Olavo sacou o revólver sem balas do cós da calça, apontou na direção de todos e ameaçou:
– Faroeste vocês vão ter é agora.
Houve uma debandada geral. Um corre-corre. Era gente procurando abrigo atrás dos troncos das árvores, dos bancos, dos postes, do obelisco. Até o Luizinho…
– O Luizinho?! – Admirou-se o Verçosa.
… sim; o destemido Luizinho, acostumado a abater, sangrar, esfolar, estripar boi no Matadouro Público, até ele escapuliu-se. Talvez por saber-se bom de faca e o negócio ali era à base de bala. E, como diziam os mais velhos, naqueles tempos em que éramos os mais novos, “Quem tem ânus, tem medo”. Logo, logo, o “cowboy desajeitado” tentou serenar, apaziguar os espíritos amedrontados:
– É brincadeira, pessoal! O revólver nem bala tem…
E nós rimos, às gargalhadas, com mais uma presepada do Zé. Os telespectadores retornaram à realidade da situação, ou seja, às verossimilhanças do filme. E a tranquilidade voltou a reinar no coração do bairro.
Só que alguém acionou a polícia.
De repente, o jipe verde-oliva parou bem perto de nós. Um cabo e um soldado dele desceram, nos abordaram e ouviram a nossa versão do insólito fato. O cabo, depois de recolher a arma, fez-se incisivo na sua decisão:
– Soldado, põe o Zé Olavo no carro!
– Vocês vão prendê-lo? – A voz era do Américo. – A arma é minha e estava sem balas. Foi só um susto, uma brincadeira…
– Por sinal, de muito mau gosto. – Concluiu o cabo. – Mas nós não vamos prendê-lo. Não há razão para tanto. Estamos indo para outra ocorrência na Feira do Gado e vamos deixá-lo na casa do pai dele. Quanto à arma, que o senhor diz ser sua, aconselho a ir à delegacia amanhã, fazer o registro, indicar a origem, assumir a posse e, com certeza, o delegado vai liberá-la.
Já no assento do carona, o Zé num dos bancos de trás sob os cuidados do soldado, o cabo advertiu-nos:
– Meninos, já é hora de dormir. Vão pra casa.
E nós, como bons meninos, obedecemos à ordem dada.
O cabo chamava-se Bill, o hábil e veloz ponta direita do time do Putiú, de quem o Zé Olavo do Paulão era um dos reservas. O “padim” Ribamar, o outro. Este escriba enganava pela lateral esquerda e o Verçosa brilhava pela direita. O Menezes, na zaga, amedrontava atacantes com chuteiras 44. O Corró se vangloriava dos gols que marcava e se esquecia dos que perdia, como todo bom centroavante. O Bibi vestia a 10, sempre reservada aos mais habilidosos. Todos sob o comando do bom caráter Osnilo, o treinador.
Post Scriptum: Texto publicado no livro Espasmos de lucidez, de minha autoria e sem editoria, às págs. 139-143. Exemplares distribuídos entre familiares e amigos.
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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.