OITO CONTOS CURTOS & CINCO MICROCONTOS
I. Contos Curtos
1. Dois dedos de conversa fiada num domingo de manhã ensolarada
O poeta do bairro chega à panificadora da esquina com suave alegria a revestir todo o rosto e um leve sorriso a alongar os lábios.
Logo cumprimenta a todos, fazendo-lhes um pedido:
– Bom dia! Amigos, me digam, por favor, alguma coisa que deleite.
A mocinha do caixa, sempre atenciosa em sua fardinha em forte lilás, quase em vinho bordô, sugere, de pronto, mas sem perder a graciosidade:
– Vaca.
Alguém da fila com cerca de uma dezena de fregueses à espera da próxima fornada – que está prestes a sair, segundo assegura o fino e educado dono do negócio – contesta com veemência:
– Dá nada! Se você não “tirar”, não vai ter leite coisíssima nenhuma.
E todos com ele concordaram, cada um ao seu modo.
MORAL: Como é espirituoso este sofrido povo brasileiro!
2. E, se tu me desprezas, ajoelha-te e reza...
Mariana não quis mais saber de Damião; recebeu-o com um olhar de indiferença e um silêncio sepulcral. No íntimo, repetia: “Entre nós, nada mais há!”.
Damião não entendeu tão repentina mudança; não vislumbrou qualquer motivo para tanto; não aceitou o desprezo que lhe impôs o amor da sua vida. No íntimo, questionava: “O que fiz eu para que tu me desprezes?!”.
Lúcifer, o anjo do Mal, achou oportuno intrometer-se na situação que já era crítica, tornando-a caótica; pôs álcool na fervura para inflamar mais ainda a incontornável crise amorosa que entre Mariana e Damião se estabelecera inesperadamente.
Damião sorveu generosa dose de uísque caubói para cada significado que encontrava para a palavra desprezo: rejeição, enjeitamento, desdém, menoscabo, desamor, repúdio, pouco-caso, aversão...
Encorajado pela embriaguez, Damião propôs à Mariana que reconsiderasse a sua decisão. A moça manteve-se firme e fria.
Entristecido por não conseguir o seu propósito, o rapaz sacou do revólver e, antes que a moça esboçasse qualquer tipo de reação, fê-la ajoelhar-se e assistir, estupefata, à cena que jamais pretendera.
Damião meteu um tiro no ouvido, espatifando o já desnorteado amor-próprio.
Em choque, Mariana desiludiu-se, desesperançou-se; não quis mais saber de qualquer relação afetuosa. O tiro atingiu-lhe o ânimo também, ceifando-lhe o próprio amor.
Post scriptum:
O desprezo consiste num sentimento emocional, forte, baseado na convicção da inutilidade da pessoa afetada, mediante avaliação assentada no ódio ou na ira.
Culpa significa a consciência mais ou menos penosa de ter descumprido uma norma social e/ou um compromisso (afetivo, moral, institucional) assumido livremente.
“Se tão contrário a si é o mesmo Amor?” (Luís de Camões).
3. Incolores, inodoras e insípidas
O ano é um qualquer aí pelas décadas de 1980 ou 1990. Não sei precisar... Isso não importa... afinal, não estou navegando (nem virtualmente!).
O lugar é um restaurante chique, às margens do Lago Paranoá – de águas então severamente poluídas, por descaso governamental e atitudes repreensíveis de certos importantes agentes econômicos –, no Setor de Clubes da capital federal, ou seja, da sede do Poder democraticamente constituído.
Participo do almoço de encerramento de mais um produtivo encontro semestral dos servidores que compõem a área de Organização do Sistema Financeiro, no Banco Central.
É uma sexta-feira. Já passa um pouco das duas da tarde. Alguns comensais ainda estão chegando, em grupos de muitas conversas e isso causa um certo barulho, potencializado pela acústica do ambiente.
O atendimento é por self service; portanto, há garçons apenas para bebidas. Costumo ser nessas horas bastante comedido – tanto no comer, quanto no beber –, afinal, à boquinha da noite, alço voo com destino à minha casa. Evito eventuais aborrecimentos. Policio-me no falar; prefiro mais ouvir. Evito dissabores.
A longa mesa estende-se desde o largo e vistoso balcão de gerenciamento da empresa prestadora de serviços até uma incomum parede de vidro, já em área suspensa sobre o espelho d’água que parece levemente tremer, sinal de ventos escassos. Sinto-me como se estivesse no Titanic, navegando em águas tranquilas e remansosas. Acordo-me do sonho, antes de ser engolido por pesadelo.
Sentei-me estrategicamente na cadeira colocada quase na cabeceira da mesa, a mais próxima da vidraça; à minha frente, um colega da regional de São Paulo, metido a piadista e engraçado, sob a sisudez própria dos que se consideram a fina flor do Éden. Lembra o gato que arranha e esconde a unha.
O contato de abertura comigo é desastroso... para ele. Após virar-se para a parede de vidro, dispensar um olhar longo para aquele mundaréu d’água e apontar severamente para o quadro de natureza essencialmente viva, cujo autor é invisível na sua onipresença e cuja beleza resta deteriorada pela ação do homem, ele me adverte com ar professoral (para não dizer de superioridade):
– Cabeça chata, isso aí é água!
Para o sulista, todo nordestino já devia ter morrido de sede e fome; assim seria menos gente pobre a ser carregada sobre os seus futurosos ombros.
Eu então observei o lago com um olhar de espanto, como se o visse pela primeira vez, e satisfiz o meu sempre espirituoso desejo de sempre reagir a desnaturadas provocações:
– Amigo, prefiro as poucas mas claras e límpidas águas dos rios e açudes do meu sofrido sertão.
E ele enfiou a viola dele no saco; a minha permaneceu à mão.
4. Cavalo no telhado
Nadei desesperadamente, bem mais do que achava que poderia; a Morte zumbindo aos meus ouvidos.
Não sei de meus parceiros, da minha gente; todos sumiram arrastados pela fúria das águas.
Este telhado tem sido o meu refúgio; não sei até quando vai poder me acolher.
Para onde olho, só vejo água, nada mais que água; sinto-me como um barco à deriva.
Para o chão não espero mais voltar; do céu, só a ameaça de mais água a desabar sobre mim.
A minha única esperança é o resgate, que não vem; se muito demorar, vou morrer de fome, de sede, de frio, de cansaço, de medo.
Nota do autor:
Desabafo de um cavalo chamado Caramelo em pleno dilúvio riograndense. Resgatado em operação televisiva, virou símbolo da luta pela vida em tragédia que se abateu sobre o povo gaúcho. Tratado em hospital veterinário improvisado, ele vem demostrando ser mesmo resiliente.
5. Entre amigas
Fransquinha e Mariinha eram amigas desde a longínqua infância.
Cresceram. Casaram-se. Tiveram filhos. E até netos.
Mariinha enviuvou.
Fransquinha começou a desconfiar que a amiga estava se insinuando para o Zezinho, seu marido.
Ciúme. Cisão. Confusão. Discussão.
– Eu lhe quebro os dentes! – Ameaçou a ciumenta.
A outra calmamente tirou da boca as velhas dentaduras, pôs em cima da mesa e provocou:
– Pois quebre...
Nunca mais brigaram.
6. O coronel e o barbeiro
Eduardo e Mônica enamoraram-se. Ele, barbeiro, jovem bonito e talentoso, mas desprovido de riquezas; ela, belíssima e filha única de coronel de muitas posses.
O pai, que não queria nem ouvir falar de tal despropósito, um dia precisou dos ofícios do rapaz.
Eduardo, com a navalha posicionada no pomo de Adão do sogro, indagou-lhe:
– Coronel, por que sua filha não pode casar-se com um barbeiro?!
E o velho homem, sentindo que a vida podia estar por um fio de navalha, respondeu-lhe com a tranquilidade que o momento permitia:
– Ora, porque ainda nenhum me veio pedir a autorização.
7. Status quo ante
Ele pressentiu que seria a sua madrugada de sorte. E jogou. E ganhou. Repetidas vezes, amealhando prêmios em dinheiro que chegaram a mais de quinze mil reais.
De manhã, sábado, deu ciência disso aos amigos em meio a churrasco que promoveu na calçada de casa. Sorriu como se fosse um novo rico.
Já na madrugada seguinte, quis aumentar a “pequena fortuna”. Voltou a jogar. Repetidas vezes. Só parou quando perdeu tudo.
De manhã, domingo, não conseguiu compartilhar sua “tragédia pessoal” com um amigo sequer. Chorou sozinho o retorno ao status quo ante.
8. A estreia
A gatinha branca estreia no cio.
Sem entender bem a situação, protege-se contra a ação insinuante de um gatão insaciável. Solta miados de infante.
Enfurna-se em exíguo espaço na base do motor do carro; sempre encarando o disposto carrasco que não desiste da conquista. Solta miados de adolescente.
Levanto o capô do carro. E os dois fogem pelo jardim. A gatinha na frente; o gatão atrás. Ela ágil e veloz; ele também. Brevemente, ela vai soltar graves miados da prenhez.
II. Microcontos
1. Amor exânime
Há anos não se viam. No reencontro não se reconheceram. Nem se lembraram de que, jovens, enamoraram-se; trocaram juras de amor eterno.
Agora, numa quase colisão frontal, xingaram-se zoologicamente. O elefante desorientado e a baleia destrambelhada.
2. Tragédia gaúcha
Na remoção dos escombros, acharam uma garrafa com um bilhete dentro.
Abriram-na.
E no bilhete estava escrito: “Nada deixo aos meus herdeiros. A enxurrada levou tudo; incluindo eles. Que importância têm algumas lágrimas cálidas neste mundaréu d’água em correnteza letal? Adeus!”.
3. Melhor velho que morto...
E, no dia do aniversário do velho mestre, um de seus ex-alunos ligou. E a conversa se fez curta e rápida:
– Parabéns, professor!
– Muito obrigado.
– Quantos anos, mestre?
– Setenta e dois, graças a Deus!
– Está ficando velho, hein!
– É óbvio! Melhor velho que morto...
E nada mais foi dito porque nada mais isso merecia. O silêncio finalizou o colóquio.
4. Amor harmonizado
Não se conheciam; nunca se viram.
Em festa no clube da cidade, houve uma rápida troca de olhares.
Ela, jovem professora de escola da rede privada de ensino; ele, jovem operador de mesa de som em emissora de rádio FM. Aproximaram-se, atraídos por igual sentimento. Dançaram. Divertiram-se.
Ao se identificarem, a surpresa: eram irmãos.
5. Amor edênico
Quando ele a viu bela como nunca e sorridente como sempre, tomou-a nos braços, levou-a até o altar a Afrodite, beijaram-se longamente e amaram-se perdidamente; no pós-gozo, celebraram felizes o acesso ao pórtico da Eternidade.