CABELO, BARBA E BIGODE
No quesito “barbearia”, os putiuenses da época – da metade do século passado em diante – dispunham de duas excelentes opções, dois profissionais formados na prática do cotidiano, dedicados e hábeis no uso do pente de osso, da tesoura de lâminas longas e pontas finas e alças com apoio para o dedo mindinho num dos elos, máquina manual de cortar cabelo e afiadíssima navalha de barbear.
Um deles era o respeitável, modesto e extremamente calmo “seu” Juarez, pai do supercraque Juarezinho – tão bom na função de zagueiro no futebol de campo quanto na de ala no futebol de salão, também conhecido como da bola pesada e atualmente transformado em futsal –, com atendimento na sala do casarão de pé direito expressivo, coberta de telhado em madeiramento rústico (linhas de caule de coqueiro, caibros e ripas de madeira sem trato de serraria), porta e janela altas, o quinto ou sexto na “sequência sinuosa de quase meia centena de prédios contíguos”, logo na entrada do bairro, parede- meia com o lar do casal Zé do Carmo e Adalgisa, os pais de Zé Aílo, mecânico e motorista de praça, Bibi, o gênio da camisa 10, Corró, o centroavante, Codó, o aspirante à 8, e mais meia dúzia de rebentos.
O bom Juarez era proprietário de verde várzea que se alongava desde a margem da via de acesso ao Putiú até a estradinha que interligava o bairro à localidade do Coió e adjacências, recortada longitudinalmente pelo riacho Salgado, que despejava suas águas – quando as tinha – no rio Aracoiaba, em meio ao bananeiral do sítio do BOC, e em cujas reentrâncias pescávamos, de anzol e isca de minhoca ou pedaços de carne de caçote, e dispúnhamos em enfieiras de arame ou cipó enervados carás ou corrós, esfaimadas traíras e escorregadiços muçuns – estes semelhantes à enguia e à moreia.
O outro, o espirituoso, brincalhão e contador de causos Zé Martins, estabelecido em ambiente discreto, que certamente antes fizera parte de residência simples e fora isolado para aquele fim específico, com área de não mais de oito metros quadrados, de pé direito inexpressivo, piso de tijolo sem revestimento, duas portas frontais, entre a morada singela das três catequistas e alfabetizadoras – as idosas solteironas Alice, Ester e Graziela – que castigavam as danações pueris com palmatória e ajoelhamentos e produziam o mais saboroso dos alfenins, apesar das recorrentes lambidas de dedos, a olhos vistos, e o bar do Antônio Pereira, auxiliar de mestre-de-linha da Rede de Viação Cearense (RVC), cuja filha – uma delas, esclareça-se por óbvio – foi, é e será sempre a grande e imorredoura paixão deste modesto escriba, de quem se tornou a recatada e eterna parceira, até que a morte não nos separe.
Pai extremado, o paraibano Zé Martins não se cansava de cobrir de elogios os seus três filhos já adultos – a mais virtuosa enfermeira da região (Adelita), o mais arrojado e corajoso soldado do policiamento de Capistrano (João Martins) e o inigualável ás do pandeiro (o sarará Tiquinho, que tinha no Sabará certamente o seu principal competidor).
Todos os causos que contava – de forma bem peculiar, parecendo acreditar no que narrava – se revestiam de exageros e absurdos. Recordo-me de um deles que ora narro com a voz do contador:
– O Tonho de Osmarina era um menino malino. Uns diziam que tinha pauta com o cão.
Outros, que tinha o corpo fechado. Alguns afirmavam ser ele um diabinho com jeito de gente e pele de piche. O negrinho corria como um veado campeiro. Nadava como uma piaba. Tinha fôlego de sete gatos. Enganava a Deus e mais da metade do mundo. O coronel Argemiro, homem de muitas posses e unha-de-fome, começou a desconfiar que estavam mexendo no seu canavial. Pôs-se, então, de sentinela juntamente com o capataz, rapaz bom de tiro de socadeira. De repente, ouviram o barulho de corte de cana. Era o danado do Tonho que, ao perceber que estava sendo observado, jogou umas seis canas sobre o ombro e abriu carreira pelas veredas do canavial. Os dois homens tentaram seguir o molecote. Que nada! O peste era muito ágil e veloz, apesar da carga. Viram ele correr pela parede do açude, então com água pelo sangradouro, e estancar bem defronte ao porão, a parte mais profunda da represa. Neste momento, o coronel ordenou que o subordinado atirasse no indigitado: Atira nos cambitos desse fio duma égua! E bum! O negrinho olhou para o lado, fez um muxoxo e sorriu. E o coronel se embrabeceu: Merda! Como é que você me erra o tiro, pustema?! – Errei não, coroné! É que o nego tem o corpo fechado. Chumbo num entra nele não. E ficaram abestalhados quando avistaram o Tonho mergulhar nas águas escuras do açude, com o feixe de cana no ombro e a peixeira no cós da calça. Os dois homens foram apressadamente até o meio da parede, lá chegando ainda com as águas borbulhando ante o efeito do mergulho do moleque. E aguardaram com as armas em posição de tiro, mais parecendo dois caçadores à espera da caça… que tardou… e não veio. E amaldiçoaram todas as gerações do negrinho quando perceberam roletes chupados de cana emergindo, um após outro, das profundezas do inferno, ou melhor, do porão do açude. Deixaram o causo pra lá porque era mesmo só perda de tempo.
Outro causo que ora me invade o ainda fértil campo das recordações, com relato na voz do imaginoso contador:
– O Dedim do Zé Coroca era o melhor motorista de caminhão em todo o agreste. Ninguém conseguia ser igual a ele; ou melhor, ninguém nem mesmo pretendia isso. Nos dias de feira, Dedim equipava a carroçaria com tábuas que serviam de assento aos cativos passageiros, para quem viajar com ele era certeza de ir e vir na mais completa segurança. Saíam na madrugada, bem antes do cocoricar das galinhas e do piar dos pintos. No meio da viagem sentiu alguma preocupação. O tempo fechou de repente. Com certeza ia cair um pé d’água daqueles. Nada podia ser feito. Seguiram adiante, pra feira. E choveu. Choveu muito. O chão se empanturrou de água. Quando o tempo abriu, aí por volta do meio dia, o sol com cara de quem sofria de dor de barriga, já era hora de tomar o caminho de volta pra casa. E a competência e a habilidade do melhor motorista de toda aquela região livraram o caminhão de derrapagens e atoleiros. Nada que interrompesse a viagem, apenas ardia na pele de todos o frio que o vento causava e as roupas molhadas pioravam. Uma freada brusca, à margem do riacho Melancias com água barrenta pelas bordas. A enchente interrompia ali a viagem. Teriam de esperar que as águas baixassem, voltassem ao nível do leito. E isso iria demorar horas. Mas… e o frio? O que fazer com o frio? As pessoas tremiam feito vara verde ao sabor das ventanias. Iam acabar adoecendo. Dedim então ordenou que todos permanecessem nos seus assentos, que se abraçassem fortemente uns aos outros, que orassem para que tudo desse certo. Subiu na boleia do caminhão, botou o motor pra funcionar, engatou uma ré e recuou alguns metros da margem do riacho. Em seguida, engatou a primeira, a segunda, a terceira… aproximando-se velozmente da correnteza. De repente, pisou no freio, meteu a marcha à ré e pisou fundo no acelerador. Essa mistura de comandos fez o caminhão levantar a parte frontal, descolar do chão lamacento os pneus dianteiros e alçar voo, numa parábola que superou toda a extensão lateral do riacho furioso. Sob aplausos e gritos e urros, o agora semideus Dedim retomou a viagem de retorno às casas de todos os seus agradecidos passageiros.
Zé Martins também ganhou notoriedade entre nós, os jovens de então, por uma especificidade de natureza biológica, genuinamente gasosa, diretamente relacionada com a capacidade humana de evacuar excrementos que incômodo causam ao organismo – muco nasal, suores, odores, gases, urina, fezes. Ele se vangloriava de ser recordista em expelir, excretar flatos. Isso mesmo!
Perseverantes leitoras e leitores, o assunto pode até carregar doses inaceitáveis, criticáveis de inutilidade e, principalmente, de repugnância. Entretanto, ao cronista cumpre registrar – até com romantismo, com poesia – a realidade dos fatos, aquilo que no cotidiano observa.
Pois bem. O barbeiro brincalhão sentia prazer em demonstrar sua eficiência – sem a mais mínima das eficácias, obviamente – na arte(?!) de soltar seguidos puns. Achava-se o senhor absoluto das flatulências e, como tal, submetia a branca barriga a movimentos que se aproximavam aos da dança do ventre, levantava uma das pernas a um palmo do chão e… haja flatos em sequência! E a nós cabia a contagem – que fazíamos entre risos incontidos –, sempre próxima de meia centena. Sempre.
Até que o Zé Milton do Chicó entendeu de investir num fenômeno idêntico, verificado na vizinha cidade serrana de Mulungu. E trouxe para competir com o Zé Martins um jovem e robusto trabalhador do sítio dos avós maternos. Com disputa em par-ou-ímpar, coube ao paraibano dar a largada no duelo. Juntou gente curiosa que, se espremendo no diminuto espaço da barbearia, acompanhou um verdadeiro festival de flatulências. O anfitrião manteve a sua marca – algo em torno de cinquenta. O desafiante, tranquilo na certeza da vitória que logo viria, dominou a contenda, impingindo ao paraibano uma inquestionável derrota. E ainda fez gozação:
– Vou poupar um pouco, pode ser que apareça mais alguém querendo cantar de galo.
Zé Martins não se acabrunhou diante da derrota. Reconheceu o desempenho do oponente. Mas não abandonou a arte(?!). Sempre que possível, demonstrava que nada havia mudado; inclusive a marca de quase meia centena.
Dois dados a acrescentar nesta espichada conversa malcheirosa.
Um. Se, naquela época, fosse fácil o acesso ao Livro dos Recordes, certamente os dois “peidões” teriam sido fortes candidatos ao pódio.
Dois. Rubem Fonseca encerra assim o seu Secreções, excreções e desatinos: “Meus intestinos começaram a produzir borborigmos e ela, sem se virar, gritou ai meu Deus que vida a minha, vai peidar no banheiro, e eu fui e fiz o que ela mandou e contemplei no espelho a felicidade que o forte ruído e o intenso odor estampavam no meu rosto”.
Respeitáveis leitoras e leitores que até aqui chegaram, declaro não saber se lhes peço desculpas pelo tema insólito ora por mim trazido às suas deleitosas leituras ou se lhes indago: quem de nós não sentiu o prazer de se aliviar de gases bem mais indesejáveis ao bom funcionamento de nossos sempre valorosos intestinos que repugnantes às nossas tão sensíveis narinas ou inaceitáveis aos nossos conceitos sobre o que seja próprio ou impróprio à convivência com os outros?
Na dúvida, rogo-lhes a devida vênia.
Notas do Autor:
1) “Deus fez a merda por alguma razão.” (Rubem Fonseca, na obra antes citada).
2) Borborigmo: ruído causado pelo deslocamento de gases e de líquidos no tubo digestivo.
3) Texto publicado no livro Espasmos de lucidez, de minha autoria e sem editoria, às págs. 146-159.
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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.