AS ESTRATÉGIAS DO BOM OSNILO
Sempre me declarei apaixonado por bola e, por consequência, pelo futebol. Sempre procurei manter uma boa relação com os dois – ela e ele. Nunca consegui alçar o patamar dos bons de bola, dos craques, o que não deixou de ser uma frustração. Também não fui um perna-de-pau, um desqualificado; tenho alguma história pra contar, narrativas em que assumi o protagonismo, tanto nos campos de futebol em que me dispus a mostrar a minha arte – sem que me tornasse um desastre –, quanto nas arquibancadas de muitos estádios, onde me revelei ser um torcedor na exata acepção da palavra, quando aprendi, na prática, que quem ama se dispõe a sofrer.
As minhas deficiências ou limitações no trato com a “amada”, costumava compensá-las com a plena entrega, sem rebuscamentos ou firulas e sem exigências ou condições de qualquer naipe. Sempre disponível estava a cortejá-la, a dar-lhe o tratamento no extremo das minhas capacidade e competência. Recorria, então, para o condicionamento físico, o poder de recuperação e a indiscutível velocidade, numa mistura em que a garra ditava a dosagem de cada um desses ingredientes; em função do momento ou da situação, é óbvio.
Quem soube melhor extrair de mim tais virtudes em pelejas que, pelo menos pra mim, marcaram a minha trajetória no universo do futebol da minha adolescência (e começo da juventude) e nos campos da minha terra (mais precisamente do meu bairro), foi, sem dúvida, o bom treinador Osnilo.
Ele confiou em mim. Sempre. Ele me encaixou num grupo de bons valores – alguns excepcionais (Verçosa, Bibi e Juarezinho, por exemplo, que jogariam em qualquer clube do país, sem qualquer exagero) –, me oferecendo um espaço que me possibilitava mostrar as minhas parcas qualidades. Se o meu perfil destoava dos que desempenhavam suas funções com habilidade porque sabiam tratar a bola com o carinho que ela merecia, havia lugar também para “os raçudos” (Menezes e até o Wilson, por exemplo).
Num dos “rachas” de meio de semana, ele me perguntou: “Você se sentiria bem vestindo a 6?” Ali, naquele momento, eu me tornei lateral esquerdo, mesmo sendo destro, o que não me trouxe sequer desconforto; até porque sempre fiz a ala com bons pontas esquerdas. E, pra melhorar a situação, já se iniciava a era dos alas – amantes da bola com a capacidade de defender e apoiar, apoiar e defender: e haja pulmão! E as “beiradas” dos campos era o meu palco; ali, bem perto da torcida; ali, bem próximo do treinador.
Não eram brilhantes as minhas atuações; elas não “enchiam” os olhos dos torcedores. Não conseguia o domínio da bola com classe, com maestria; nem havia em mim a genialidade na criação de jogadas de efeito, de dribles desconcertantes, de arremates indefensáveis, de gols fantásticos; mas havia a firmeza da marcação, na quase infalível recuperação, na certeza do retorno à defesa nos sempre perigosos contra-ataques adversos. Não fiz gols, mas salvei alguns. Sempre numa mistura de fôlego e raça, o que, modéstia às favas, eu tinha pra dar e emprestar a quem desses atributos precisasse.
Num domingo de últimas chuvas, já esparsas, jogávamos, no campo da Manga (hoje estádio municipal), contra uma boa equipe da periferia de Fortaleza, cujo nome a velha, cansada e corroída memória septuagenária já não me permite recuperar. Logo após a saída de bola, ganha por eles no toss (à época, quem ganhasse o toss escolhia a bola ou o campo), caiu um inesperado toró. A chuva passageira, embora torrencial, causou – nunca soube por que isto – um estímulo diferente nos nossos adversários que, de imediato, adotaram a tática do abafa, da pressão, com toques rápidos e deslocamentos constantes, enquanto o piso reagia ao aguaceiro. Esse comportamento deles desarticulou o nosso sistema defensivo, com marcação em duas linhas de quatro bem definidas, em que um dos pontas recuava até a nossa intermediária para compor com os dois meias de contenção – o Edmarzinho e o Juarezinho – e o de criação – o Bibi – um quarteto de primeira reação (o então famoso “limpador de para-brisas”). O segundo bloco agia na “segunda bola”.
O entrosamento dos agentes desse sistema “esfarelou-se”. Todos entraram em pânico, ninguém se entendia, virou um caos, e desse desarranjo eles se aproveitaram. O gol deles foi só uma questão de pouco tempo. Só não entraram com bola e tudo porque tiveram humildade, não nos impondo decepção ainda maior.
A chuva se foi e com ela o ímpeto deles e o desespero nosso. O certo é que, se mantido fosse o esquema tático até então posto em prática – por eles, pois o nosso nem existia – e teríamos sofrido uma goleada histórica.
Como sair dessa zona de desconforto? Como reagir? Aí entra o papel do treinador. Uma rápida conversa de “beira de campo” com o Juarezinho, o mais versátil de todos nós, em quem confiávamos, principalmente nas mais complicadas situações, o bom Osnilo conseguiu mudar a configuração do jogo. Abandonando completamente a zona de marcação, o craque infiltrou-se pelos espaços deixados na intermediária adversária e, juntamente com o Bibi, subiu a nossa linha de criação. Os dois flutuavam de lado a lado, municiando os pontas e, quando possível, arriscando chutes ao gol de longa distância. Pronto. Apenas com a mudança de posicionamento de apenas uma peça – e que peça! –, nós deixamos de sofrer a pressão e passamos a impor cuidados e preocupações ao sistema defensivo deles. Agora quem sufocava era o bom time do Putiú, sob a batuta do bom Osnilo.
O jogo logo tornou-se parelho, bem disputado, com uma qualificada – quase perfeita – arbitragem, a cargo do sóbrio Coquinho, o sobrinho do Menezes, que dele sempre merecia severas críticas por não “ajudar” o time do tio. Só que o placar não se alterava, com as defesas segurando o ímpeto dos ataques. E nós perdíamos de 1x0. Em casa, tratava-se de um resultado nada agradável.
No intervalo, as orientações eram de que mantivéssemos o padrão – uma hora, eles iriam falhar, do que aproveitaríamos para empatar e, quem sabe, até virar o placar em nosso favor.
Quando o jogo já se encaminhava para a reta final, com a onzena visitante encurralada contra a barreira próxima à linha de fundo, o bom Osnilo percebeu que pecávamos nas constantes tentativas de bola alçada na área, porquanto a dupla de zagueiros centrais, de boa estatura e de perfeito posicionamento, além de hábeis nos cabeceios, tudo isso tornava infrutíferas as nossas investidas. Era malhar em ferro frio.
Chegou, então, a hora de o treinador tirar o coelho da cartola, ou seja, fazer algo diferente, sair da mesmice. E o que ele fez? Algo que, para muitos, beirava a loucura. Substituiu o centroavante – no caso, o Celinho (Célio Marinho); clássico, na função – pelo Timbuca que, lateral esquerdo no “segundo quadro”, era, de direito e de conhecimento da função, além de canhoto, o meu reserva imediato. Sem recolher qualquer das críticas que então lhe dirigiam gregos e troianos, em relação às quais fez “ouvido de mercador”, chamou-me à beira do campo e deu-me, de forma clara, a devida instrução. Disse ele:
– Precisamos furar o bloqueio deles pelo chão. Jogo aéreo não vai resolver. Vá lá e tente entrar com a bola dominada pelo meio. Cave um pênalti, se for o caso. Nada de boniteza; nós precisamos é de raça.
E eu fui à frente, disposto a cumprir a ordem do chefe. (Eu era, circunstancialmente, um 6 invertido).
Já nos minutos finais, todos torcendo para que o Coquinho não desse o jogo por encerrado, o Bibi enfiou, com a maestria que lhe era peculiar, a bola à minha frente, na direção do meio da zaga. A jogada mostrou-se ideal para os propósitos meus e do bom Osnilo. Parti pra dentro da área, mirando a meia-lua e a marca do pênalti, sem perder o domínio da “criança”; tratei-a com a habilidade que nunca imaginei ter e com a garra que sempre tive, na cabeça um só pensamento: “Eu vou entrar no gol com bola e tudo. Ninguém vai me impedir”.
Quem já jogou de zagueiro sabe como é complicado roubar a bola de quem passa no meio dos dois; um esperando pelo outro e nenhum agindo como devia. Quando menos esperei, estava diante do goleiro que, antes que eu esboçasse algum drible, voou aos meus pés; e eu meti a bola sob aquele corpo que certamente iria me levar ao chão... e levou. Só que a bola rolava lentamente em direção ao gol completamente aberto.
Acho que o Coquinho já se preparava para marcar o pênalti; acho que algum jogador de defesa pretendeu evitar o gol; acho que tudo isso não podia acontecer por uma questão de mérito, de todos nós; acho... já no chão, vi o Edmarzinho aparecer por detrás da defesa e estufar o barbante. Era o tão desejado gol de empate. E, enquanto me levantava e tentava limpar a areia da camisa e calção, ouvia os aplausos da torcida; pra mim, um momento mágico, guardado na parte mais profunda e marmórea da memória, onde jamais perecerá.
À noite, na “barca” lá no bar do Meu Santo, todas as atenções se voltavam para dois personagens nem sempre merecedores de reconhecimento: eu, o lateral cuja principal virtude era a raça; e o treinador, que teve a coragem de investir no aparentemente improvável – o simples e bom Osnilo.
Nota do Autor:
Cumpro, assim – embora com algum atraso –, o compromisso assumido no fecho do texto Simplicidade e estratégia, aqui publicado nas primeiras edições deste jornal, em que homenageio um personagem que fez história no futebol do Putiú: o simples e bom Osnilo. E que Deus o tenha em seu reino, na Eternidade.
_____________________________________
Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.