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COLUNA DO PUTIU

AS ESTRATÉGIAS DO BOM OSNILO (II)


Prazeroso – até demais! – era vestir a camisa do Putiú Atlético Clube, à época no padrão vermelho-preto-e-branco, e disputar jogos no campo de piso misto (um entremeado de grama ou o popular capim-de-burro, chão batido e solo arenoso), vizinho ao Matadouro Público, equipamento municipal popularmente conhecido como Matança (com gente até sentada ou recostada na cerca do curral, de barrotes e mourões de trilhos de ferro), entre a então Feira do Gado e a Manga (1), espaço surgido – segundo consta da oralidade cultural, construída por narrativas de pessoas conhecedoras de boa parte da história do bairro – pela ação dos irmãos Lázaro e Luizinho, abatedores de gado de corte para consumo local, em trabalho que abrangeu, inclusive, o recorte de um morrote – a barreira bem atrás de uma das traves, também usada por torcedores sentados no chão, é o que isso sugere.

Pois bem. Eu – em efervescente adolescência e florescimento da juventude – adorava jogar ali; não havia diversão mais agradável (nem os banhos de rio em invernadas provocadoras de enchentes; nem as andanças pela pracinha – só pra ver gente bonita a passear, ou pela calçada da estação ferroviária – só pra ver o trem passar; nem as noitadas dos sábados em bares bem qualificados pela sociedade baturiteense). Nada disso superava os jogos das tardes de domingo, fizesse chuva ou sol.

Entretecer os  fios de cosedura das conversas fiadas, dos causos de ocorrência nunca provada, das piadas contadas por quem tinha arte para tanto, das maledicências quase sussurradas e sempre acompanhadas de risinhos debochados, todos nós, os atletas do Putiú, sentados na calçada de quem assumia a responsabilidade de fazer funcionar as engrenagens que moviam o grupo; trocar de roupa na sala de visitas da casa dele, do treinador Osnilo Félix, recém chegado da feira de Pacoti, com a família isolada na sala de jantar, em pleno almoço; receber dele a camisa dobrada que nos qualificava como titular para o embate prestes a acontecer; ouvir atentamente a preleção com um falar próprio de quem demonstrava conhecer os caminhos do futebol que praticávamos, cuja concentração se restringia àquele momento específico, nada de sonhos e tudo de realidade; deixar nossas vestimentas simples em pequenos montes sobre as sandálias japonesas no piso cimentado daquele ambiente acolhedor; sair já devidamente uniformizado, incluindo meiões e chuteiras de biscoitos de sola e pregos, pela rua e beco de acesso ao campo; adentrar o espaço de jogo com marcações à cal e sob aplausos de torcedores que margeavam quase completamente a área reservada ao espetáculo; jogar com a dedicação pouco vista em profissionais dessa arte centenária; retornar, alegre ou triste, ao sabor do resultado alcançado na peleja; vestir-se, deixando o material esportivo, suado e sujo, em amontoado num dos cantos da sala do treinador, que se encarregava de – às custas do Ribamar Peixoto, o mantenedor das respectivas despesas – mandar lavar e passar visando à próxima jornada, já no domingo subsequente; e, participar, à noite e no bar do Meu Santo, na pracinha do bairro, de um pós-jogo, alegre ou triste, de comemoração ou de reparação, conforme o resultado e o desempenho, coletivo ou individual, verificado no jogo; tudo isso, em conjunção, tornava perfeito o meu fim de semana.

Agora, havia também as viagens que, no mais das vezes, ocorriam em caminhão fretado, quando nós nos acomodávamos no módulo principal da carroceria, sentados no piso de madeira ou apoiados, de pé, na sua estrutura frontal ou, ainda, usando as grades laterais ou traseira como assento, embora isso equivalesse a um risco de sinistro plenamente evitável.

Raramente viajávamos de ônibus. Lembro-me de algumas, com tal conforto, até Aratuba, lá onde a serra se prepara para mergulhar no sertão e vivenciamos algumas situações interessantes, como, por exemplo, a do jogo que só foi dado por encerrado pelo juiz (2) após a ordem da dupla – Ribamar e Osnilo – para que o Newman não defendesse a quinta ou sexta cobrança de pênalti inventado à sombra do final da tarde, senão ainda estaríamos por lá à espera de que isso acontecesse e eles alcançassem o honroso empate. É o caso, também, da ida até Capistrano, onde houve uma confusão, iniciada entre nós, os jogadores, após troca de sopapos entre o Newman, o nosso goleiro, e o centroavante deles (3), e perigosamente generalizada pela invasão de torcedores, alguns armados de faca, quando de lá saímos em debandada – até hoje não sei como passamos pelo mata-burro, o único acesso ao campo de jogo, nos escondendo, sãos e salvos, no interior do ônibus –, a que se seguiu uma saraivada de pedras, causando quebradeira de vidros das janelas do veículo, cujo prejuízo, pelo que consta da crônica esportiva da época (essencialmente falada), a edilidade capistranense, através da Secretaria de Esportes e Cultura, teria assumido após intervenção de políticos de ambos os municípios.

O trem se oferecia como meio de transporte mais adequado quando o destino era Quixeramobim, no Sertão Central cearense. Saíamos da estação do Putiú às 7 da manhã do  domingo (sob o responsável comando da dupla Ribamar e Osnilo; com o Zé Américo e o seu inseparável boné animando a festa, como sempre) e lá chegávamos por volta das 13. Enganávamos “o bucho”, por conta da casa, com sucos ou refrigerantes e bolos ou pastéis, na ampla área de atendimento de bar/restaurante de esquina, com portas frontais e laterais, além de banheiros bem cuidados, cujo dono era o empresário mantenedor do time anfitrião. Jogávamos das 16 às 18 (uns minutinhos a mais, caso os donos da casa precisassem de um tempo extra para atingir os seus objetivos, lembrando que não havia, em campos das cidades interioranas, todas elas, a iluminação artificial; portanto, os jogos se realizavam à luz do sol). Curtíamos a noite da cidade-berço de Antônio Conselheiro, até por volta das 22 ou 23 horas, no que a pracinha da Matriz (igreja ao padroeiro Santo Antônio) e entorno tinham a oferecer-nos (até animada tertúlia, ao som de conjunto local, em uma das oportunidades). E sofríamos o resto da noite e toda a madrugada: até à 1, na estação, sem quase conforto, à espera do trem, e até às 7 da manhã da segunda-feira dentro dele, aos sacolejos e paradas em muitas estações, mal acomodados, da forma mais cansativa que se possa imaginar. Mas nós gostávamos de ir. E íamos todas as vezes que nos convidavam. No primeiro dia da semana, a nossa produção tendia a zero; o corpo reclamando repouso.

Alguns jogos se tornaram memoráveis por razões bem específicas. Fácil é resgatá-los do fundo do baú das lembranças, onde são zelosamente guardados. 

O contra a excelente equipe do Coríntians, de bairro periférico de Fortaleza, numa das boas atuações de todo o grupo, o que nos rendeu uma vitória de 2x0, é um deles. Outro que também frequenta, não raramente, a nossa lembrança é o de estreia do Caxangá (o Antônio Filho) na ponta esquerda, tanto pelo golaço por ele marcado nos minutos iniciais do prélio (eu estava guardando esta palavra para usá-la num momento especial, com o sentido de batalha, luta, peleja, pugna) quanto pelo desempenho de todos, em especial o sistema defensivo – o arrojado goleiro Newman em destaque – na manutenção do placar (1x1), sob a pressão avassaladora do selecionado de Antônio Diogo (distrito de Redenção, ex-Canafístula e sede de leprosário de referência), num jogo que só terminou quando não mais se via a bola (já era noite!). Há, ainda, o de Itapiúna, encerrado em meio à confusão de torcedores locais, cujo apaziguamento resultou da interferência do Álber, chefe do posto da Receita Estadual ali sediado, mas residente no Alto da Capela, em casa vizinha à do seu Holanda; os contra o Acarape, sempre bem disputados e tensos, convindo destacar uma das confusões em que, no chuta-e-leva e no corre-corre, desvendamos o mistério enclausurado no interior do guarda-chuva do seu Manuelzinho, sempre bem-vestido em calça e camisa de linho branco, com vinco revelando o uso de água-de-goma na aplicação do ferro de engomar a brasas.

Agora, o mais marcante que, em  face do que ora pretendemos registrar, ou seja, a intervenção direta do treinador na evolução de uma equipe no curso da partida, isso concorrendo para a obtenção de um resultado desejado, certamente merece ser ressaltado, consistiu no duelo entre o Putiú e o Vila Brasil do Gumercindo, empresário no ramo das tintas de parede e automotivas, o carismático senhor da charanga que animava a torcida em jogos do Fortaleza, seu time do coração, no velho estádio Presidente Vargas, palco de tantas histórias envolvendo astros e equipes que faziam o futebol cearense, então tido como profissional.  

Estávamos em pleno período de férias de fim de ano, tanto as escolares quanto as do futebol. O abençoado ar de dezembro já não nos trazia somente o indispensável oxigênio a nos encher de vida os pulmões, mas também um não-sei-quê a invadir-nos o coração e fazer-nos sentir que a humanidade também sabia irmanar-se em momentos festivos como o Natal e a chegada de um novo ano. Uma paz angelical invadia-nos a alma e nos encantava e nos tornava solidários como em nenhum momento no curso do ano que já quase caducava. As flores sorriam. As borboletas voejavam sobre campos verdejantes. Os esmoleres (4) generosos viam em cada pedinte alguém carente da sua ajuda, do seu apoio, da sua esmola. As famílias se regozijavam em cada festa de que participavam. Enfim, a felicidade transbordava em harmonias. E Deus revelava, nas ações das suas terrenas crias, a sua inquestionável onipresença. Ah se o sempre insensível tempo não desfizesse tão harmoniosas convivências demasiadamente humanas, repletas de compreensões, de entendimentos, de transigências, de amor!

E foi, nesse ambiente encantador, num misto de poesia e grandiosidade espiritual, numa tarde de domingo que antecedia o sábado natalino, que protagonizamos, no campo da Feira do Gado, o último jogo do ano e o mais importante da minha experiência como jogador do time do bairro que ainda amo – o Putiú.

O Gumercindo, aproveitando a folga de craques tricolores e pondo em prática a sua influência como um dos próceres do clube do Pici, enxertou o seu Vila com alguns daqueles profissionais, quais foram: o goleiro Sérgio Gomes, cria da base e reserva do Lulinha (ambos iriam, no futuro, mudar de ares e vestir a camisa do Vozão); os zagueiros de área Zé Paulo e Pedro Basílio (que, em breve, comporia com Artur uma das melhores defesas do alvinegro de Porangabussu – nome que, em tupi-guarani, significava “belo” e “grande”); o meio campista Lucinho (um dos ídolos da época: domínio e lucidez; criatividade só comparável à do baiano Zé Eduardo, um dos gênios da bola); o centroavante Geraldino Saravá (que parou na severa marcação dos nossos combativos zagueiros Menezes e Wilson que, em qualquer dos lances, não se intimidaram ante a presença de um reconhecido goleador); e o ponta esquerda Mimi (baturiteense, originário de família domiciliada no entorno do Seminário dos Jesuítas). Se o time básico já era bom, ganhador de títulos em competições envolvendo times de bairros da capital, imaginem, imprescindíveis leitoras e leitores, com essa pitada de reforços de grande peso.

A torcida compareceu em grande escala; tinha gente até de municípios vizinhos. Lá fora, uma mistura de animas de passeio e carros da época. A arbitragem seria a já tradicional: o insuspeitável e rigoroso Coquinho.

O jogo mesclou classe e tensão. Havia um considerável – e perigoso, pra nós! – domínio dos visitantes. E esse fenômeno se originava da maestria – e magia, é óbvio – de um astro. Enquanto nós não deixássemos de lado o comportamento de torcedor, certamente seríamos “engolidos” por eles, que sabiam jogar... e muito! Um gol de bela feitura, tanto pela sequência de troca de passes quanto pelo primor da conclusão – bola no  ângulo, lá onde a coruja dorme, sem chances de defesa – com marca registrada de um goleador nato – nos acordou do relaxamento próprio do encantamento; mostrou-nos que não se tratava de um sonho, de uma aventura jovial, mas de um jogo de futebol em que nós também devíamos assumir o papel de protagonistas. Antes do recomeço da partida, após o gol deles, eu, lateral então correndo pelo lado em que se encontravam o treinador – o bom Osnilo – e os reservas, ouvi a observação dele, dirigida ao Juarezinho – ele, sim; o de sempre:

– Eu quero que você exerça marcação “homem-a-homem” no Lucinho. Não jogue, mas não deixe ele jogar. Siga o Lucinho para onde ele for. E do resto a gente cuida.

Dito e feito. O brilho do gênio não mais reluziu. Era a luz de um craque embotando o lume de outro. E nada mais de significativo e digno de registro aconteceu. Fomos para o intervalo com o placar favorável a eles. 

Na volta para o segundo tempo, o Vila já trazia duas mudanças, pois Lucinho e Geraldino, por razões que jamais soubemos, não retornaram ao campo de jogo. Há quem afirmasse tê-los visto saindo, no carro de um deles, com destino à capital.

E o jogo adquiriu outros contornos. Juarezinho recuou um pouco para agir como volante de contenção, em “dobra” com o Edmarzinho. O Bibi cresceu no jogo, com um show particular, meio mágico e todo espetacular. O Niltinho, na função de centroavante, não conseguia desarmar a firme marcação da dupla de zagueiros, daquelas que não deixam o adversário sequer respirar, embora não lhes desse sossego. O Vila Brasil assustava nos ataques esporádicos, quando conseguiam ultrapassar a bem posicionada primeira linha de quatro (Bibi, Edmar, Juarez e Bill ou Caxangá, dependendo de que lado – direito ou esquerdo – se originava e se desenvolvia a jogada). Só que o Newman, em mais uma de suas impecáveis atuações, não deixava passar nem pensamento; pegava tudo. E nós, os laterais – Verçosa e eu –, cumpríamos à risca as orientações do técnico: nada de aventuras, postura de defensor, muita atenção nas manobras e velocidade dos pontas e, principalmente, nada de cruzamentos da linha de fundo, haja vista que o centroavante adversário era exímio cabeceador.

A tradicional charanga do dono do time, agora disposta na zona de cobrança dos escanteios em favor deles, não parava de tocar, estimulando os avanços dos seus atacantes. Só que isso mexia com os nosso brios, não deixava cair a intensidade e disposição com que defendíamos as nossas posições. 

O jogo era bom, bem disputado; os torcedores não arredavam pé. As tentativas do Putiú em busca do empate sempre esbarravam na técnica e no preparo físico de um trio – Sérgio Gomes, Pedro Basílio e Zé Paulo. As investidas do Vila Brasil visando à ampliação do placar encontravam um intransponível empecilho: a atuação perfeita de um trio – Newman, Wilson e Menezes.

Meia hora de segundo tempo. Osnilo partiu, então, para uma das suas substituições estratégicas: saiu Edmarzinho, meia de contenção, e entrou o Hélio (Corró), centroavante. Com isso, ele trouxe o Niltinho para formar com o Bibi o meio campo de criação e fixou o Juarezinho à frente da zaga, para fazer as vezes de “limpador de para-brisas”, exercendo uma função que agora é rotulada de volante (5). Perdia na contenção; reduzia a proteção do cinturão defensivo; em compensação, ganhava mais volume de jogo no ataque – numa situação em que pretendia reverter um resultado adverso – principalmente  pela entrada de um jogador voluntarioso, boa presença de área e sem qualquer desgaste físico. A recomendação era de que flutuasse entre os dois zagueiros centrais e, assim, abrisse espaços para a infiltração dos meias – Bibi e Niltinho – que mais acionariam os pontas – Bill e Caxangá. Disso resultou uma certa pressão sobre uma marcação mais frouxa devido ao cansaço natural de algumas peças. Os adversários também mudaram o esquema de jogo, com substituições que mais investiram numa formatação conhecida como “ferrolho”.

Já na reta final, uma mágica troca de passes entre Bibi e Niltinho permitiu que este enfiasse uma bola, com açúcar e com afeto, para o chute do Caxangá; e dele saiu um petardo. E um bólido surpreendeu o Sérgio Gomes que se viu obrigado a fazer uma defesa parcial, dando o rebote já na pequena área. Atento, o Hélio percebeu que a ele a bola se oferecia; porém, quando já se preparava para desviá-la para as redes, o Zé Paulo pretendeu interceptar a jogada com um carrinho lateral; só que, por ter chegado atrasado, antes que alcançasse o objetivo, ele atingiu faltosamente o centroavante putiuense. Pênalti claro, indiscutível, insofismável. E o Coquinho não titubeou, trilando o apito enquanto apontava para a marca da cal. E ninguém questionou. Ouvia-se apenas o barulho da torcida, pois até a charanga parou de tocar.

Naturalmente ao Niltinho caberia a cobrança, dada a sua competência e, mais ainda, a sua experiência. Entretanto, o Bibi pôs a bola debaixo do braço, reclamando para si o direito de cobrar a penalidade. E o Osnilo fez coro com a torcida: Bi-bi! Bi-bi! Lógico: a  voz do povo é a voz de Deus, desde os primórdios da civilização.

O filho de dona Adalgisa (ela que recentemente subiu ao plano superior) ajeitou a bola com esmerado zelo na marca da cal. Afastou-se um pouco. E, com a calma de quem sabe fazer o que vai fazer, encarou o goleiro que ensaiava alguma premonição de que algo daria errado (que fosse contra ele!). Coquinho autorizou. O silêncio tornou-se absoluto. Todos os olhares se voltaram para a trave da barreira. As passadas do cobrador eram firmes, traduziam confiança. O chute. O  goleiro escolheu o canto esquerdo. A bola viajou mansamente para o direito. Passou a poucos centímetros do poste. Escorregou levemente pela bochecha da rede, como se pretendesse acariciá-la. Aninhou-se lá no fundo, bem próximo à barreira. Vibração da torcida. Recolhimento da charanga. Era o empate.

Bola ao centro. Saída para o jogo. E o árbitro, com um apito longo, seguido de dois mais curtos, encerrou o jogo. Torcedores invadiram festivamente o campo da batalha. Havia muitos cumprimentos de mãos. E o que mais se ouvia era “Parabéns!”. O regozijo se fazia  plural. A alegria se espalhava em sorrisos. O cansaço... ora o cansaço! Nada que um bom banho não resolvesse. A tarde morria lentamente, à falta da luz solar. A noite já se anunciava com a sua natural escuridão. O jovem ponta direita, contra quem exerci uma das mais ferrenhas marcações, aproximou-se de mim; cumprimentamo-nos. Já não éramos mais adversários. Na voz dele, o justo reconhecimento: “Foi um excelente jogo. E vocês não mereciam perder.” Saudei-o com um pedido de desculpas por eventual atitude antiesportiva, além de uma simplória e natural despedida: “Até a próxima, amigo”.

À noite, no bar do Meu Santo, a cerveja azeitava as conversas. Lances eram recuperados da memória fotográfica de cada um. O Ribamar fez um brevíssimo discurso; na verdade, ele não era de falar muito, ou melhor, quase não falava. O Osnilo também registrou a sua gratidão ao grupo por ter-lhe dado esse presente de festas. E o silêncio marcou um instante de congraçamento: éramos uma família. E a oração que Ele nos ensinou uniu-nos em ato de profundo agradecimento por tudo o que juntos vivenciamos no curso do ano que se findava. Depois desse momento de reflexão, essencialmente humano, deixamo-nos usufruir da glória que uma quase-vitória nos proporcionava. Em breve, ao campo de batalha retornaríamos. Com a mesma e sempre vontade de vencer.

Um último registro cumpre-me fazer: quem se dispuser a reviver o futebol putiuense daquela época – décadas de 1960 e 1970 – perceberá que pelo menos seis abnegados senhores construíram, com devotamento e paixão, uma história merecedora de perpetuação. Ora cito os seus nomes em ordem alfabética: Antônio Pereira (o Guariba), Jaime Carlos (o Cara!) José Paulino (o BOC), Osnilo Félix (o treinador), Ribamar Peixoto (o Meu Padim) e Vicente Pinto (o Vicentinho). 

A eles, o meu reconhecimento e a minha gratidão.

 

Notas do Autor:

  1. Um pequeno aglomerado de casas de taipa, no meio de ampla várzea destinada ao trato de gado bovino (daí a denominação Manga, ou seja, “pasto resguardado por cercado”, em regionalismo cearense), o embrião de atual logradouro com bom índice populacional que ainda mantém a denominação original.

  2. Um jovem arruivado, surdo-mudo, que conhecia as regras do jogo e se impunha com gestual bem característico, numa linguagem por todos compreendida.

  3. Se não me engano, o quixadaense Piolho, cujo cognome tornou-se conhecido em toda a região centro-sul, mas já em fase decadente.

  4. Esmoler é quem dá esmolas; pedinte é quem pede.

  5. Volante: substantivo que deriva do verbo latino “volare” (“voar”, em português); na prática, ao volante cabe “voar” (deslocar-se) de uma lateral a outra do campo de jogo, guarnecendo a defesa nas subidas dos alas ao ataque. Daí a expressão “limpador de para-brisas”.

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