GAMBIARRA NO FUTEBOL
Não sei a quem atribuir a paternidade da ideia; muito menos a identificação de quem a pôs em prática. No meu tempo era assim: havia certas coisas que aconteciam sem-ter-nem-pra-quê (só pra recuperar uma expressão em voga no passado), surgindo praticamente do nada. De repente, a gente tomava ciência da sua existência.
Lembro-me, entretanto, de ter sido convidado pelo Caxangá (1), amigo desde a pré-adolescência (de disputar, no curso das férias escolares, jogos de botão no cimento da entrada da casa dele, cuja frente recebia o sombreamento de uma frondosa castanhola, bem defronte à pracinha do bairro), ele que já demonstrava carregar no DNA, certamente do lado que coube ao pai – o desportista putiuense mais conhecido como Antônio Guariba – no respectivo processo formativo, a “informação genética” de quem, apaixonado pelo futebol, se aprazia em formar equipes, times nessa modalidade, para disputas de jogos, torneios pontuais ou até certames de duração mais longa; com um detalhe a ressaltar, qual seja o de que, se fosse ”marginalizado” em qualquer evento do gênero, o saudoso Papagaio reunia os que receberam idêntico tratamento e os convencia a, juntos, formarem o que ele mesmo chamava de ”pegados na rua”, entrarem como “renegados” na competição e, não raramente, protagonizarem jornadas marcantes.
Quantas vezes encheu o próprio carro – um fusquinha 1979, bege – de jogadores caucaienses por ele convidados a ir reforçar o Putiú de Osnilo e Ribamar em jornadas domingueiras no Alberto Vagner (ex-campo da Manga)! E o Torneio de Férias do Luzardo Viana (colégio da CNEC em Caucaia), ganho pelos “pegados na rua”, após histórica goleada sobre o bom time cenecista, em final numa noite de sábado, com o ginásio coberto simplesmente lotado, ele no comando! Dava “aula” a quem se dispusesse a aprender. Sabia
lutar, sabia vencer.
Voltemos ao convite, indulgentes leitoras e leitores. Queria o meu futuro cunhado que eu compartilhasse com ele a formação de um time de futebol de salão (goleiro mais quatro), numa versão então conhecida como “segundo quadro”, mais tarde denominada de “juniores”, vinculado ao do pai – o Ferroviário –, que disputaria certame em quadra improvisada lá na Feira do Gado.
Pois bem. Antes do ingresso no projeto “Juniores do Ferrim”, fomos conhecer o palco de peladas das nossas prováveis atuações. E lá estávamos nós: o Cizô do Atum, na condição de goleiro; eu (o Luciano do seu Expedito) e o Claudionor de dona Eunides, como defensores; o Joãozinho do Antônio Bruno e ele, na função de atacantes; todos não lembrados por equipes que já jogavam ali, em preliminares dos disputados pelos respectivos times de adultos, a saber: o Bangu do Jaime Carlos; o Ceará do Zé Paulino (BOC); o Ferroviário do Antônio Guariba; o Fortaleza do Luizinho da Matança; o Palmeiras do Roberto do Detran; o Putiú do Ribamar Peixoto; e o Vasco do Vicente Pinto.
Era uma festa. Era uma divertida opção à tradicional pracinha do Putiú. Para quem não dispunha de muitas ofertas de divertimento, ali se fazia um acontecimento propiciador do encontro de gerações, com todos os seus saudáveis desdobramentos.
A “quadra”, perfeita para “rachas” ou “peladas” com bola Pelé – o sucesso da época, identicamente ao tênis Kichute com biscoito de borracha –, consistia numa faixa de terra entre as margens da via principal do logradouro, em calçamento de pedra tosca, e a longa
calçada frontal do prédio onde funcionava a Escola de Artes Donaninha Arruda, recentemente inaugurada. Com piso de chão duro, traves de barrotes de madeira com vão um pouco maior que as tradicionalmente usadas no futebol da bola pesada (2), redes antigas do futebol de campo adaptadas ao novo formato de uso, marcação à cal e iluminação à base de gambiarras e instalada sem autorização do respectivo órgão técnico – a Coelce –, tendo como fonte clandestina a rede pública, a partir de poste fincado no outro
lado da rua, mas bem próximo do “equipamento” improvisado. A bola era a mesma usada no futebol de salão, assim como as regras básicas, incluindo tempo de duração das partidas. Os atletas não calçavam tênis; apenas protegiam os pés com tornozeleiras elásticas.
Jogamos uma rápida “pelada” de reconhecimento do campo. Aprovamos a ideia. Decidimos compor o time “marginal” do Caxangá, porquanto o pai dele não podia saber que existíamos; afinal, ele se vangloriava de ser a sua equipe a única que não despendia recursos nem se preocupava com atletas em formação; a concentração era bem outra.
É o Ferrim, meu filho!
Aí vieram os problemas. Não dispúnhamos do essencial: dinheiro suficiente para comprar tecidos e, depois, contratar costureira com tempo e disposição para confeccionar as camisas. Calção preto todos nós tínhamos. A bola quem fornecia era o grupo promotor do evento.
Com o sacrifício de nossas merendas escolares, fizemos uma “vaquinha” e conseguimos o que queríamos, embora não fosse de boa qualidade e resistente para o fim a que se destinava o tecido comprado (algodãozinho ralo de cor branca). Uma parenta do nosso “empresário” tanto se ofereceu para confeccionar as camisas “de graça” quanto se comprometeu a lavar e passar quando isso se tornasse necessário. Agora, vestir as benditas camisas era uma verdadeira obra de paciência e contorcionismo, com extremo cuidado para não estourar as costuras. Dinheiro pouco, economia de pano.
A nossa estreia ocorreu – por implicância do Caxangá – logo contra o Palmeiras, a melhor das equipes bem formadas, séria candidata ao título do certame envolvendo os “segundos quadros”. Por obra e graça dos santos protetores dos humildes, vencemos a partida por 1x0, gol dele – um golaço, por sinal (um tirambaço indefensável, após drible de corpo desconcertante) – e uma noitada perfeita do arrojado goleiro Cizô. Desconfio que nessa noite o protótipo de craque não pregou pestanas; era felicidade vertendo, jorrando por todos os poros.
No torneio início, realizado na véspera da data reservada ao dos “adultos”, fomos eliminados já na primeira partida, nos pênaltis, após um 0x0 duríssimo. Nem me lembro de quem perdeu o pênalti que acabou dando a vitória pra eles... pros outros... também nem lembro quem era o adversário; afinal isso agora nem importa. O que importa mesmo é que o título ficou com o bom time de verde.
Grande novidade!
Prossigamos com a nossa aventuresca trajetória de “juniores” em palco iluminado por gambiarras. A tabela do certame reservou para nós a revanche do time do Roberto do Detran, o campeão do torneio início. E nós sofremos uma “surra” desmoralizante; daquelas que deixam os sovados – nada a ver com pão massa fina – em pleno e perene desassossego (até hoje, quando isso me invade a área reservada às possíveis recordações, eu não me perdoo, vergo- me à penitência). E eles não tiveram pena de nós. E gozaram muito em face do placar: 8x1. E nós havíamos saído na frente, com gol “sabe de quem?!”. Dele.
Ocorre que, quando a Coelce soube da gambiarra, agiu dentro da sua alçada de competência, considerando, inclusive os riscos gravíssimos a que se expunham todos os envolvidos na atividade à margem da legitimidade e da precaução, da prudência.
Como restou o entendimento de que a gambiarra devia ser desfeita porque equivalia, a rigor, apropriação indevida de um bem público, surgiu uma ideia contrária – outra de paternidade não bem esclarecida –, sugerindo que o fornecimento da energia elétrica se desse a partir de tomada na sala da direção da Escola, cujo consumo, à época, compunha a quantidade reservada (incluindo a iluminação pública), por regra constante do convênio, ao governo estadual. Pronto. A Coelce não poderia alegar “roubo de energia”.
Sem consultá-la, mas com a anuência verbal de órgão da municipalidade, procedeu-se à retomada da competição. Ocorreu apenas mais uma única rodada; e mais uma derrota nossa, só pra não fugir à regra. E, novamente, o pessoal do Escritório local da Companhia, sob a gerência do competente senhor Bernardo, não concordando com tal entendimento, pôs fim no que poderia ter alcançado o sucesso pretendido; para a decepção e frustração de quem houvera investido no negócio. Futebol é assim mesmo: há os que ganham, mas também há os que perdem. Os empates correm por conta da exceção que confirma a regra.
Agora, para os “juniores” do Ferrim, acabou sendo um alívio. Já não íamos “apanhar” tanto. Quanto à “quadra”, adequaram-na à finalidade que se lhe mais ajustava: campinho de “peladas” dos nossos animados fins de tarde, até que a noite nos impusesse a sua natural escuridão. Nada de gambiarra. Em “rachas”, as “inteligências” são bem outras, sem invencionices arriscadas. (O perna-de-pau é o dono da bola: sem ela, ninguém joga. Por exemplo.).
E assim, imperturbáveis leitoras e leitores, acabo de lhes narrar uma história verdadeira, cujos sonhos embalados por gambiarras levaram-nos à submissão aos que agiam sob a proteção da lei então vigente. Como sói acontecer. Afinal, manda quem pode e obedece quem tem família (antes era “juízo”, algo que, na atualidade, quase não mais subsiste aos costumes e prazeres humanos).
Notas do autor:
(1) Antônio Pereira da Costa Filho, também conhecido pelos cognomes Caxangá (talvez por conta da música sertaneja “Caxangá era um tocador / Que só tocava Pisa na Fulô / Pisa na Fulô, Pisa na Fulô / Pisa na Fulô, não maltrate o meu amor”), Papagaio (certamente devido ao nariz meio saliente) e Professor (exatamente porque se julgava o exemplo a ser seguido na arte de jogar bola e, por extensão, driblar e marcar muitos gols, sempre bem construídos). Com a perna esquerda, canhestro que era, driblava bem e chutava forte.
(2) A seleção de futebol de salão de Baturité (Carlinhos Viana, Wilson, Eusébio, Boneco, Niltinho, Eilson) acabara de sagrar-se campeã do 1º Intermunicipal da modalidade, feito que se repetiria dois anos depois (o bicampeonato).