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COLUNA DO PUTIU

AGUARDE-NOS, CARQUEJA!

– Nada vai impedir que aí estejamos


Na nossa programação de domingo, havia o registro – virtual, se fosse hoje – de visita à Carqueja (1), distrito de Capistrano, com acesso pela CE-356 até a encruzilhada com a CE-060, seguindo à direita nesta rodovia, cruzando a sede do município pela CE-257 (que se inicia num formato de “forquilha” e bem em frente ao posto de combustíveis) e nela permanecendo como se fôssemos pra Canindé, só que, logo após poucos quilômetros adiante, dobrando à esquerda para estrada carroçável, à época, trajeto que nos levaria até o nosso destino. 

E o que de tão importante iríamos fazer lá? Jogar futebol. E isso era a nossa mais perfeita diversão. 

As noites de domingo sem um jogo à tarde perdiam muito da sua graça. Não havia “barca” no bar do Meu Santo. Não dispúnhamos de qualquer motivo para justificar o cansaço à amada e no ombro dela descansar a cabeça e até cochilar. O amor sempre foi lindo! (Quem é do meu tempo interpreta bem essa expressão.) E, antes de a noite iniciar os preparativos para passar o turno pra madrugada, tínhamos de nos recolher à nossa rede de dormir por simples falta de opção. O bar vazio. Ninguém pra jogar conversa fora. Trem, só na manhã da segunda. Televisor, só na praça (com hora pra desligar (2), sob o comando do artífice Mino; quanto a mim, logo surgiu o aparelho pertencente ao generoso seu Holanda (3), mas sob o rigoroso controle da dona Nazaré, a mulher dele). Telefone, só o fixo da estação ferroviária (em área de acesso restrito aos funcionários da empresa). O negócio, então, era contar carneirinhos (no meu caso, ripas e caibros e telhas), até o sono chegar (e, às vezes, a noite transcorria totalmente desprovida de sonhos). 

O campo da Feira do Gado, entre a Matança e a Manga, e o caminhão como principal transporte nas viagens motivadas pelo futebol eram, a rigor, as nossas principais diversões. E nós as vivenciávamos à plenitude. 

Pois bem. Nós devíamos ir à Carqueja, a convite deles. Nunca havíamos jogado lá. Seria a primeira vez. No meu caso, também a última. Nunca mais lá estive, nem nos meus tempos de Agente de Coleta do IBGE. 

No começo da tarde, em pleno período invernoso, mas sob um céu limpo e sem qualquer prenúncio de chuva, praticamente todos nós já estávamos concentrados no módulo quase quadrilátero da pracinha, apenas alguns ainda no interior do bar do Miguel Pedrosa – popularmente conhecido por Meu Santo – que já se preparava para encerrar o atendimento, posto que ele também iria conosco, na condição de torcedor, identicamente ao seu Pedro, já a postos na calçada da sua barbearia. Quanto ao seu Manuelzinho, assumiria vaga reservada na boleia lá no Sanharão, à frente da sua bodega. O Nonato da dona Ester já disputava com o Bibi, como sempre acontecia, a contação de piadas e “causos” engraçados, fazendo aumentar a roda das pessoas que os estimulavam a assim agir com risos e gargalhadas.  

Ante a demora do caminhão contratado para a viagem, decidiu o Ribamar enviar um mensageiro que, de bicicleta, mal saiu logo chegou. E a notícia trazida por ele desagradou a todos. Com pane no motor, só verificável na segunda-feira, inviabilizado estava o cumprimento do que fora verbalmente acordado. O contratante, acostumado a conduzir-nos a outros eventos do gênero, apenas desculpou-se pelo imprevisto. E a viagem, por conseguinte, sofria o consequente cancelamento.

Alguém – acho que o Jaime Carlos – teve uma ideia:

– E se seu Zé Antônio aceitasse fretar o caminhão dele?

O Ribamar, tranquilo e calmo até em situações de estresse, ressalvou:

– O problema é convencer o motorista dele, assim às pressas, logo num domingo à tarde.

O Meu Santo, acostumado a enfrentar problemas das mais diversas ordens, ponderou:

– Eu acho que não custa nada tentar... 

E o Osnilo, complementou: 

– Até porque o Chico Caboclo não é doido, nem chupou manga com febre, para contrariar uma vontade do patrão.

E lá se foram os três – Jaime, Osnilo e Ribamar – ter com o seu Zé Antônio, mestre-de-linha aposentado da extinta Rede Viação  Cearense (RVC), cidadão bastante respeitado pela generosidade, pela complacência. E a conversa foi curta e alvissareira. Saíram de lá com a devida autorização. Restava, apenas, o atendimento de uma condição: 

– Por mim, o frete está acertado. O caminhão está à disposição de vocês. Só peço que “molhem a mão” do Chico. É o dia de folga dele.

Pronto. A questão estava praticamente solucionada. Dependia tão-somente da boa vontade do Chico Caboclo que, por sinal, residia na Feira do Gado, a poucas casas da do Osnilo.

O Elialdo (Pezão) acabara de almoçar no restaurante de mamãe – dona Alaíde, casada com o seu Chico Pedrosa, irmão do Miguel, e pais do Carlos, um dos novos e promissores craques da época – e ainda mantinha o seu jipe de praça estacionado ao lado do estabelecimento. E a corrida se fez rápida e ligeira. A comitiva conseguiu convencer o motorista a aceitar o trabalho extra, após um nada desprezível “dinheirinho por fora”. Só que, ainda no jipe, dispensou-nos uma expressão facial de quem não estava nada satisfeito (como dizia um dito popular, “com cara de quem comeu e não gostou”). Mas o importante é que faria a viagem; pelo “extra” já recebido e, mais ainda, para não correr o risco de perder o emprego. Incomodado e abusado, entretanto.

Alguns minutos depois, já nos acomodávamos na carroceria do veículo, na forma de praxe. E animados seguíamos com destino à Carqueja. O atraso bem que poderia ser compensado no trajeto, caso o Chico Caboclo se dispusesse a contribuir para isso. Mas não foi bem assim.

Antes de Capistrano, após uma longa descida, deu-se uma inesperada parada no acostamento. Capô levantado. Fumaça espargindo do motor superaquecido. Prego. Vazamento de água no sistema de refrigeração. O que fazer? Uns pequenos ajustes e a reposição do precioso líquido. A sorte é que a proficiente comissão técnica do Putiú costumava, nas viagens, conduzir um recipiente fechado com água de beber e pedras de gelo. E a sede da máquina passara, então, a ser mais importante que a dos humanos – a nossa, os atletas.

No posto de combustível, defronte a entrada para a cidade, mais água no radiador do carro e reabastecimento do recipiente, a fim de suprir eventual reprise da pane. E retomamos a viagem, já com um certo receio quanto a chegar em tempo de jogar. Se a noite no mínimo se avizinhasse, a bola bailaria apenas nas nossas animadas conversas. Nos campos, algures e alhures, nem pensar.

Mal deixamos a CE-257, dobrando à esquerda na via carroçável, em linha reta para o nosso tão desejado destino, e mais uma parada. O radiador sedento clamava por água. O motor febril soltava fumaça pelos poros. Passado um tempo para esfriamento de todo o sistema, e o desejo deles – radiador e motor – foi satisfeito. 

Mais adiante, à margem da rodovia, um pequeno reservatório de águas das chuvas; e um homem prevenido vale por dez. Explico: além de o radiador receber um oportuno reforço aquoso, o abençoado recipiente recuperou a capacidade de salvar-nos de nova pane do motor antes da entrada triunfal na Carqueja dos nossos acalentados sonhos.

Ocorre que, à medida que avançávamos no trajeto, mais rapidamente o problema se repetia; o nosso principal parceiro de viagem mais parecia estar de ressaca após tremenda carraspana: bebia água e vazava por onde se mostrasse possível. E a das chuvas, recolhida às margens da rodovia, também acabou sendo consumida. Graças a Deus que isso nos permitiu chegar ao destino. Com atraso que nos impôs uma recepção de desencorajamento. Mas lá estávamos... uns quase desbravadores.  

Com toda a razão, os anfitriões já haviam desfeito todo o esquema montado para o jogo. O jovem fazendeiro e comerciante patrocinador do time local explicou, calmamente, de pé e por trás do balcão de atendimento, como seria complicado remontar tudo, até mesmo reunir os seus jogadores, já dispersos ante a certeza de que não mais teriam contra quem jogar.

Enquanto os nossos líderes com ele discutiam formas alternativas de solução do impasse, nós nos preocupávamos com a viagem de volta, com a estratégia de coleta e condução de água que satisfizesse a sede recorrente da dupla “radiador & motor”, isso revestido com a impaciência e a má vontade, claramente perceptíveis, de um caboclo motorista.

Estacionado sob uma frondosa mangueira, o caminhão, de capô levantado, recebia a atenção do seu mais fiel companheiro – ou seria comparsa?! – na tentativa dos reparos das engrenagens, em relação às quais, ali e naquele  momento, só ele detinha conhecimento de fato. E o Bibi nos acalmou:

– Calma, gente! O Chico também quer voltar em paz. O que ele não fez à tarde, vai querer fazer à noite. Aposto como não vai mais haver vazamento algum. A raiva dele já era...

E eu passei a olhar de través para o Chico Caboclo. Será que... deixa pra lá. A minha percepção sentenciava: Aí tem coisa! E ele, agora, aparentava estar bem mais tranquilo que preocupado.  

Houve o jogo. 

Apesar de o transporte de quase a totalidade dos atletas do distrito ser a montaria – cavalos, burros e jegues (nesse tempo, não se pensava sequer em motos) –, a comunidade era relativamente pequena, o que facilitava a comunicação estritamente oral. Aduzimos que três deles, oriundos da sede do município, ainda ali permaneciam, aguardando transporte para o devido retorno, disputando animadas partidas de sinuquinha de gaveta, também conhecida como bilharina.  

O relevo daquele pedaço de chão, no meio do sertão central, era acidentado. O verde da caatinga, dado o inverno de razoáveis precipitações pluviais, é que lhe emprestava uma roupagem de encantamento; isso tornava belo o feio, fácil o difícil, agradáveis até os eventuais incômodos – como o subir e descer a pé vias ladeirentas e, aqui e acolá, escorregadias; e os “biscoitos” das chuteiras compunham o nosso sistema de frenagem. 

Com efeito, a vila foi erguida num platô, com o amplo comércio do senhor daquelas terras na esquina, a partir da qual uma declivosa e curvilínea estrada carroçável levava a uma várzea plana e verdejante, de clima ameno, onde ficava o campo de futebol, todo margeado de cerca de pau-a-pique, com entrada por estreito portão na lateral, cujo acesso se dava através de um pátio frontal destinado à concentração de torcedores e provido de equipamentos rústicos e próprios para a amarração das montarias. Ah, o sol sofria de um forte quadro anêmico; os seus raios não aqueciam, nem alumiavam. 

Com gramado irretocável – o  melhor de todos os que já houvéramos experimentados –, em piso de nivelamento digno de elogios, contrastavam as reduzidas medidas do campo de jogo – tanto as de largura quanto as de comprimento – e mais ainda a dos espaços de uso dos espectadores, de que resultavam alguns contratempos entre quem jogava e quem assistia, às vezes uns tendo de invadir o que aos outros pertencia, de pleno direito – esportivo, é óbvio!

Verificou-se até um lance engraçado. Num escanteio a nosso favor, pelo lado direito do ataque, o Caxangá se apressou na cobrança – já transcorria o segundo tempo e o Putiú já perdia – e, após abrir, com jeito, um pequeno espaço em meio a um grupo de inflamados torcedores, não conseguia alcançar a bola porque, a cada investida, havia alguém para impedi-lo a isso fazer, seja puxando o calção, seja agarrando a camisa. O jovem provedor do time impôs o seu poder de comando, o escanteio foi cobrado e o Hélio (Corró), de cabeça, “estufou os barbantes” dos anfitriões, fechando o placar de 2x1 adverso aos visitantes, nós.

Em alguns momentos, nos vaiaram; em outros, nos aplaudiram. No curso de todo o jogo, apoiaram, obviamente, os de casa; e nos atrapalharam no que puderam. Nada além do que se pode considerar normal, quando se atua na terra dos outros. Ao término da peleja, já não éramos mais adversários. E, no retorno à vila, muitos conosco se misturaram na caminhada pela via ladeirenta, a noite já se espraiando pelos campos do sertão vestido de verde; lá em cima, no platô onde ambientado o núcleo habitacional da localidade, o frágil resplandecer da iluminação pública.

Antes da viagem de volta, o Osnilo, em rápidas palavras, avisou-nos que o Chico Caboclo houvera descoberto o motivo das repetidas panes: um simples aperto da abraçadeira de fixação da mangueira à bomba d’água e o vazamento desapareceu. Conclusão: nós retornaríamos às nossas casas sem os mesmos transtornos, percalços, empecilhos enfrentados no trajeto de ida. E o Bibi estava coberto de razão. E a minha desconfiança pareceu ter-se generalizado. Houve até quem xingasse, com palavrório beirando o impublicável, o tinhoso caboclo motorista.

Ainda sobrou tempo para a “barca” no bar do Meu Santo. Logicamente, o assunto central das nossas conversas versou sobre o vazamento da mangueira devidamente superado pela competência técnica do Chico Caboclo, o motorista do caminhão do seu Zé Antônio que, certamente, de nada soube. Foi o que nos garantiu o Caxangá, o neto dele.


Notas do autor:

  1. Carqueja é um arbusto de pequeno porte, nativa da região amazônica, com propriedades anti-inflamatória, de combate à anemia, asma, diarreia, diabete, além de estimulante do apetite, digestiva e redutora dos níveis de colesterol. Por muitos considerada erva daninha, é popularmente conhecida como “vassoura”, porquanto seus ramos, agrupados e amarrados, serviam para varrer terreiros. Duas conclusões minhas ante esse achado: Uma: A geração atual não tem, com certeza, a menor noção do que seja isso. Duas: O Google é mesmo fantástico!

  2. Não raramente após o término do Programa Flávio Cavalcanti, um tradicional clássico dominical da época.

  3. Com a possibilidade de assistir ao Telecatch Montilla, dedicado à exibição de combates de luta-livre que combinavam encenação teatral, disputa corporal e circo com picadeiro restrito a um ringue; o principal “ator” se chamava Ted Boy Marino, ídolo de muita gente (eu pelo meio).

   


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