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COLUNA DO PUTIU


MENINO DO BAIRRO (parte 2)


Hoje, com um simples olhar para o passado, até para a recorrente visitação ao caminho percorrido, percebo a validez e a serventia dos meus protagonismos (todos eles!) e das minhas narrativas (todas elas!) no curso do meu processo formativo. Não é sem propósito elencar, aqui e agora, alguns/algumas que ora saltam da empoeirada gaveta das memórias e povoam este enriquecedor momento de comum leitura de uma vida, ora já septuagenária (E, se já me propus a rememorar fatos ocorridos no meu Putiú dos tempos idos, todos eles envolvendo ilustres personagens, nada mais natural que comece tal trajetória por mim mesmo).


Ei-los(as):

a) as saudáveis brincadeiras no entorno da igrejinha, umas com sol e sombra, outras com chuvas e banhos ao ar livre, além de tantas outras com tanto fazia:

a.1. gol a gol com traves de chinelos ou tijolos ou pedras e bola de meia no caraquento patamar frontal ou controle de bola nos fins de tarde, com a porta central da capela servindo de gol;

a.2. futebol de botão (regra geral, capas velhas de relógio compradas na relojoaria do seu Zé Farias, lá na Sete de Setembro), em campo de madeira (produção caseira do futuro mestre Olavo, meu irmão), com goleiro de caixa de fósforo e enchimento de chumbo derretido e nela moldado e bolinha de caco de prato bem lapidado);

a.3. rasteira (tampa de lata de manteiga pequena – Itacolomy ou Cabeça de Touro –, preenchida com cera de abelha) arremessada contra castanhas dispostas em triângulo desenhado a carvão em calçadas cimentadas;

a.4. bandeira, carimba e peladas, estas no largo espaço entre o paredão dos fundos da igreja e a frente das residências dos casais seu Holanda e dona Nazaré, seu Zé Augusto e dona Fransquinha até a do seu Miguel e dona Margarida, tendo como limite o oitão ou outeiro da casa de taipa dos Macaxeiras;

a.5. furachão, em especial em peixe desenhado no solo afrouxado pelas chuvas e caroço de manga sob o formato do olho, o troféu do vencedor da peleja;

a.6. bila ou bola de gude, de preferência as de aço, geralmente obtidas na oficina mecânica (escola profissionalizante de muitos jovens da época), quase na esquina da subida do Alto da Capela, de propriedade do seu Zé Raimundo, cuja esposa – dona Roquelina – era respeitável exemplo de pessoa no relacionamento com quem a procurava;

a.7. cabra-cega, pega-pega e cinturão queimado (“Boca de forno, forno / Furando o bolo,

bolo / Jacarandá, dá / Quando eu mandar, vou”.);

b) as conversas e as atualizações das boatarias, tendo como ponto de encontro o velho e enegrecido camburão, sem boca e sem fundo, recostado num dos lados do paredão dos fundos da igreja;

c) os seriados televisivos em preto e branco, quando eu e uma trupe de moleques, todos barulhentos e fedidos a suor (Zé Milton, Claudionor, Claudemir, Marcos Alverne, Sérgio, Arquimedes, Tica do Mário), abusávamos da paciência do seu Holanda e enervávamos a dona Nazaré, casal dono do único televisor em todo o cocuruto do Alto da Capela;

d) as luaradas no patamar ou nas escadarias de acesso à igrejinha, sempre ao som do mavioso violão ou do febricitante cavaquinho, sob o virtuoso dedilhar do ás das cordas, o Aluísio, filho do seu Raimundo José e dona Zefinha e irmão do Sabará, e o mais ágil e veloz ponta esquerda que tive o prazer de ver jogando; não raras vezes, acompanhava-o a voz canora e agradável da jovem Erbênia, filha do seu Henrique (enfermeiro e motorista da ambulância do Samdu) e dona Miroca e irmã do Américo, do Clóvis e do Ubiratan (Tantan);

e) as pescarias de anzol e isca de minhocas (recolhidas a enxadadas no solo úmido do frondoso jenipapeiro nos fundos do quintal da casa dos meus pais), regularmente realizadas nas entrâncias de águas mais profundas e tranquilas dos rios do bairro – o Putiú e o Aracoiaba – e nos poços formados às margens do riacho Mucunã, ao longo da vazante do seu Juarez, o sóbrio barbeiro pai do Juarezinho, o craque versátil;

f) as caçadas de baladeira ou estilingue – cujos treinos de pontaria tinham como alvo as lagartixas alçando os muros dos quintais das moradias – pelas matas do Coió (o de Baixo e o de Cima), da Mucunã (com retorno pela via férrea a partir da estaçãozinha do Açudinho e em contorno ao sopé do morro do Cruzeiro) e das Areias (ali pras bandas do Candeia, com ida por dentro das terras do seu Porfírio, pai do Inácio e da Maria do Assis, e volta pelo bairro Lajes); cumpre-me, por reconhecimento, ressaltar a habilidade ímpar do amigo Sabará, pandeirista da melhor qualidade, tanto nas pescarias quanto nas caçadas; recordo-me que, numa manhã de sábado, sob contrato informal do seu Holanda, o ás da baladeira abateu, da janela que da sala de jantar dava para o quintal, um casal de ariscos capotes (galinhas d’Angola) com apenas dois tiros certeiros;

g) os jogos de futebol no Monte-Mor, no campo dos jesuítas (com direito a banho de friíssimas águas da fonte canalizadas em varas ocas de bambu e merenda à base de jaca mole), no dos salesianos (pelo Oratório Festivo Dom Bosco) e no da Matança/Feira do Gado (entre o matadouro público e a Manga), bem como nos campinhos do Beira-Trilho (entre os benjamins da lateral da estação ferroviária, no espaço hoje ocupado pelo monumento à Maria Fumaça), do Beira-Riacho (entre o elevado da via férrea e a estradinha carroçável de acesso ao Coió, logo depois da ladeira pós-residência do casal seu Antônio Bruno e dona Alaíde, pais do Damião e do Joãozinho, até a margem do riacho Mucunã que limitava o sítio do seu Zé Paulino ou BOC) e do Gilete (aberto sobre o aterro do lixão fronteiriço à recém inaugurada Escola de Artes Donaninha Arruda, atual CEJA), além dos improvisados em patamar de igreja, em bancos de areia formados pelas enchentes dos rios e no amplo interior de prédio da Chesf, construído e não utilizado, ao lado do Matadouro Público;

h) os roubos de frutas:

h.1. as goiabas de miolo vermelho nos quintais murados de residências na avenida Sete de Setembro com fundos para a rua São Paulo;

h.2. as mangas nos sítios do seu Porfírio e do seu Vicente Pinto [casado com dona Lourdes, pais de Eliézer, Edilza, Vicentinho, Erandir, Antônio, José e Ednilza (Elvira)], deliciosas itamaracás saboreadas no leito do rio Aracoiaba, as águas mornas e transparentes se esparramando pelo corpo semidesnudo;

h.3. as bananas no sítio do BOC, pai do Djalma e do Jair, em cachos antes enfurnados no meio das touceiras e encobertos com palhas secas das bananeiras;

h.4. as atas no sítio do seu João Mendes, pai do Aluísio e da freira Valquíria (que um dia tentou, sem sucesso, avaliar os dons artísticos da turma – eu pelo meio – como personagens de peça teatral) e das moças Valdereza, Helena e Margarida, no cume do Alto do Bode, com dois portões de entrada: um, pela via iniciada nas proximidades do chafariz público, pros lados da ponte sobre o rio Putiú, e com destino à Feira do Gado (atual rua Vigário Raimundo Francisco Ribeiro); o outro, pela atual Travessa Santo Antônio, com acesso pela lateral da residência/comércio do casal seu Zé Carneiro e dona Maria (pais da Tereza, Luís e Miguel), e quase defronte à vila de casas onde residia o casal seu Mosael (sapateiro) e dona Francisca (pais da Graça, Socorro, Lúcia, Liduína e João Bosco – doutor do Hospital dos Sapatos, com sede a poucos passos da minha casa, e uma das minhas fontes de informação), logo depois das geminadas, vizinhas de meia-parede – numa delas morava a família do seu José Gertrudes, pai de dona Maria de Lourdes (casou-se com o Ribamar e tornou-se mãe do Klebinho) e do Manoel Croinha e Joaquim, e, na outra, a do casal seu Chico Alves e dona Nozinha [pais do Adauto, Vaqueiro, Ivone, Ribamar, Lenir, Eribaldo, Erivaldo (Dim) e Tácita].

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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.


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