Por que “Na marca do pênalti”?
“Se fosse um grande filósofo, como o autor deste livro, teria compreendido então que trabalho consiste em tudo que se é obrigado a fazer e que prazer consiste naquilo que não se é obrigado a fazer.” [Mark Twain, em As aventuras de Tom Sawyer. Trad.: Luísa Derouet. Ed. Nova Cultural Ltda.: São Paulo (SP), 2003; pag. 21].
Um dia – sob as imprescindíveis proteção e influência da minha musa inspiradora –, escrevi um longo texto (e que essa informação não vos desassossegue, ó perspicazes leitoras e leitores, pois não se trata de novidade em quem sempre agiu assim; sois testemunhas oculares desse até natural proceder em mim). Publiquei-o na edição dominical de 1º de julho de 2017, do Segunda Opinião (1), do qual extraio o excerto ora abaixo transcrito literalmente:
“Indague-se a qualquer cidadão brasileiro com mais de cinquenta anos de estrada que evento marcante lhe invade a memória, embora já carcomida pelo tempo, ante a simples referência ao ano de 1970. É até possível que haja alguém a lembrar-se de algum ato de exceção – que lhe tenha imposto alguma perda irreparável, que lhe tenha causado lanhos incuráveis no mais íntimo do ser, que lhe tenha alterado profundamente a sua trajetória de vida – praticado pelo governo militar, à época sob o jugo de Médici (2) e sua arrasadora arma de guerra política, o Ato Institucional nº 5, mais conhecido como AI-5.
É também provável que lhe venha à mente algum evento essencialmente peculiar, particular, como, por exemplo, o próprio casamento ou o nascimento do primeiro rebento.
Mas a grande maioria, a esmagadora maioria vai lembrar-se, com certeza, da histórica conquista dos gênios da bola – Pelé e sua turma (3) – em solo mexicano, o que valeu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, troféu que simbolizava a então inquestionável posição hegemônica do futebol brasileiro sobre todas as demais nações que praticavam
essa universal modalidade de esporte.
“Múltiplos foram os efeitos decorrentes de tal feito. Além da popularesca vitória do ‘pão e circo’, que sempre reafirma e fortalece o poder nas mãos de quem os fartamente distribui, dois outros merecem destaque: a razão maior para o futuro desabafo de Zagalo – Vão ter de me engolir! – e a confirmação de que no Brasil ‘o negócio é diferente’, porquanto marginais assumidos subtraíram [de concorrentes enrustidos] a Jules Rimet e a derreteram. Para a vergonha nacional, torraram os louros da vitória.”
Sobre essa histórica conquista – provocadora da exposição, em massa, de um quadro multifacetado, febricitante e de incontido arrebatamento de um povo sofrido (embora carnavalesco na essência), em todo e qualquer rincão de um país continental, da Amazônia aos Pampas, protagonizando, a um tempo só, a mais ampla, colorida e diversificada manifestação de alegria –, ainda agasalho no cantinho de onde emanam as mais agradáveis recordações, com um toque especial de saudosismo, imagens que jamais se descolorem, não se esvaecem, apesar de o insensível tempo tanto agir no sentido de que isso ocorra.
Entre tantas, há duas que, a meu exclusivo sentir, merecem ser plenamente recuperadas e descritas no aqui e no agora.
“É fácil perceber, às vezes, ser mais legal a comemoração de uma vitória do que aquilo que se conseguiu propriamente.” (Professor Clóvis de Barros, em postagem no Facebook – acesso em 23.7.2024, às 16h40min).
Uma.
A espaçosa e arejada sala de visitas ou de estar da residência do seu Murilo Cavalcante, então chefe da estação da Rede Ferroviária Federal S.A. – RFFSA, sucessora da Rede Viação Cearense – RVC, em Baturité, no bairro Putiú, esteve simplesmente “entupida” de putiuenses de todas as idades, uns sentados no frio chão de cimento queimado – cinza claro – e outros espremidos nas três janelas abertas para o segmento frontal do alpendre, não sei quantos olhos atentos e voltados para um mediano televisor de umas vinte polegadas, em preto-e-branco (4), sobre o tampo de pequena mesa de madeira, estrategicamente posicionada num dos cantos do compartimento, no melhor ângulo de visão panorâmica.
E o riso – de alegria espontânea – se fez coletivo a cada jogada espetacular da seleção nacional. E a apreensão – receio e preocupação – invadiu a alma de todos nós, impondo-nos um silêncio assustador, na abertura do placar pela Squadra Azzurra (5). E a explosão de sentimentos se tornou incontrolável a cada gol – e foram quatro (6) –, todos com a marca registrada do melhor futebol do mundo. Nem a sisudez do dono da casa pôde coibir tais arroubos de contentamento, ele deixando-se também envolver pela singularidade do momento. E os turrões, casmurros também se emocionam, vibram, riem, choram, alegram-se e entristecem-se. Os nossos olhos é que não se mostram capazes de perceber tais enlevos, porquanto há neles a predisposição para recolher apenas manifestações atitudinais que os revelem carrancudos, sisudos, mal-humorados. (Eles também têm coração; embora duros, pulsam.)
Assim que o árbitro alemão Rudi Glöckner trilou o apito dando por encerrado o espetáculo em campo, com a torcida mexicana abraçando festivamente o povo cujo futebol fazia todo o mundo render~lhe as devidas homenagens, o público da casa do seu Murilo, isolada em área defronte à centenária estação ferroviária, voltada para boa parte do bairro, o quintal margeando o leito do rio Aracoiaba, já se transportava para a pracinha e, ali, deixava transbordar toda a sua alegria, toda a sua euforia ufanista pela conquista do título mundial [“De repente é aquela corrente pra frente / Parece que todo o Brasil deu a mão! / Todos unidos na mesma emoção / Tudo é um só coração” (7)]. E haja carnaval fora de época!
Duas.
Àquela época, eu, já com dezoito anos de existência terreal, era o tipógrafo-encarregado das edições dominicais do jornal católico A Verdade, cujo diretor, editor-chefe e proprietário era o Comendador Ananias Arruda, com a sempre laboriosa participação da sua filha adotiva, a educadíssima senhorinha dona Rosinha (Rocivalda Comaru) na função de secretária.
Havia algum tempo que residia em Fortaleza a família desse ilustre cidadão baturiteense – filho de Aracatiaçu, distrito de Sobral –, exemplo de honorabilidade e responsável direto por muitas benfeitorias implementadas na terra que aprendeu a amar e, por extensão, decidiu dedicar toda uma vida pública – profícua, benéfica e exitosa –, desde o patrocínio de importantes instrumentos de educação formal confiados aos jesuítas, aos salesianos, às salesianas e aos cenecistas (8), até a edificação da primeira unidade hospitalar e de assistência materno-infantil (9) da região, com a administração entregue às filhas da ordem de São Vicente de Paulo ou, como eram popularmente conhecidas, as Irmãs de Caridade (10), passando pela rede de eletrificação pública (Chesf/Coelce) e a pavimentação, em manta asfáltica, da via de interligação da cidade à Capital cearense.
Após um certo período em que apenas passava os fins de semana em sua ampla casa em Baturité [hoje sede do Museu que leva o seu nome, na principal via de mobilidade urbana (11)], a idade já avançada – era octogenário – e a frustração derradeira (12) obrigaram-no a alargar o tempo de permanência na Capital; assim, o intervalo semanal tornou-se quinzenal e, às vezes, até trissemanal, dependendo das condições de saúde para as viagens de ida e volta, em carro fretado. Nesse período, em face de não admitir a interrupção das edições do seu jornal já cinquentão e por aconselhamento da sua secretária particular, confiou-me a grata responsabilidade do exercício das funções de editor e revisor, acumulando as de tipógrafo e colaborador que já desempenhava.
Ao informar que toda a comunicação se daria com a dona Amélia (13), por intermédio de mensageiro que perfazia, em carro próprio e regularidade diária, o trajeto Baturité-Fortaleza- Baturité, exigiu-me, para o adequado exercício das novas funções ora a mim confiadas, a plena e rigorosa observância das regras básicas que norteavam, desde sempre, os objetivos primordiais do semanário católico – em especial, a sobriedade e o caráter religioso das publicações –, e mantivesse a diagramação que dera, nos últimos anos, marca própria ao jornal de folha única e dobrada ao meio, impressão nas duas faces – externa e interna –, quatro páginas e cinco colunas, com alguns espaços cativos, a saber:
1) o evangelho do domingo, composto em tipo 10 de fonte itálica e em coluna dupla, abrindo a primeira página, logo abaixo do clichê com dados de identificação da publicação/edição [nome (14) e número de sequência do periódico, data, etc.];
2) ao lado, a matéria, de cunho religioso, literário ou de opinião, considerada a de maior significação pela editoria;
3) a crônica do João Ferreira, ex-tipógrafo, cadeirante, que costumava usar a máquina de datilografia tendo como apoio o peitoral da janela frontal da sua casa na avenida Proença, que dá acesso à igreja Matriz de Baturité: no alto e à esquerda da segunda página, interna;
4) a coluna Notícias de Baturité, assinada por José Aêdo Silveira, chefe da Agência local dos Correios (sediada em prédio próprio, isolado e recuado, na avenida 7 de Setembro, defronte ao templo dos protestantes pentecostais e entre a tipografia e o casarão em que residiram famílias Arrudas – a dos pais e, depois, a do irmão do Comendador, o senhor Raimundo Arruda; de dois pavimentos, o térreo institucional e o superior residencial) e professor cenecista, e escrita à mão com caneta esferográfica (costumava reutilizar aparas de papel, recolhidas do lixo gráfico): no topo e à esquerda da quarta página;
5) a coluna Baturité em Comentário, em texto escrito à mão, caligráfico por excelência, com caneta-tinteiro e em folha de papel almaço, por José Augusto Pinheiro, servidor do Departamento Nacional de Combate às Endemias Rurais – DNERu, com sede na avenida 15 de Novembro, defronte ao cartório do João Batista Furtado (Registro Civil e Imobiliário): no topo e à direita da última página.
Cabe ainda notar que:
a) as colaborações do Comendador, basicamente noticiando fatos verificados além dos limites da terrinha, ele as escrevia de próprio punho, também com caneta-tinteiro em tiras de papel da largura de não mais de dez centímetros, em grafia que não raramente lembrava as garatujas dos receituários médicos (eu aprendi, por necessário, decifrá-las);
b) os espaços nas páginas internas sem preenchimento cativo, eu já os utilizava para a publicação da Coluna do Putiú, de minha autoria, criada por sugestão do meu irmão Olavo, quando era responsável pelo jornal, antes de transferir-se para a Tipografia Minerva, em Fortaleza, já com avanços modernosos – o uso do linotipo (não mais letra a letra, mas linha a linha) e impressão em offset –, e o aval da boníssima senhorinha secretária particular do editor-chefe do A Verdade.
Nos fins de semana em que a família passava em Baturité, sempre ocorria, logo na manhã do sábado, uma reunião de esclarecimentos e justificativas, ele, sempre sério, sereno, discreto e severo, sentado em cadeira de braços e espaldar alto na cabeceira da longa mesa de madeira, de tampo escuro adornado por toalha do tipo “caminho de mesa” em linho branco, com acabamento em crochê e bordados manuais de florezinhas, e, ao centro, um jarro de uns 30 centímetros, de vidro, com flores naturais, olorosas, em arranjo simples e harmonioso e admirável, na sala de refeições da casa da 7 de Setembro, ampla, arejada e ornada com mobiliário de época, despojado e equilibrado; uma luminária de cinco lâmpadas pendente do teto em revestimento de lona pintada de branco, à moda daquele tempo; o piso de cerâmica genuinamente lusitana que, aliás, se alastrava por todos os outros cômodos; o acesso por alpendre lateral, coberto, após hall de entrada com porta lateral para a sala de estar, só aberta em ocasiões especiais, para receber visitas ilustres, e ao longo de florido e bem cuidado jardim; ao fundo uma das portas para a capelinha – a outra diretamente dessa sala – em estilo clássico e com duas filas de três bancos de madeira, com assento e base acolchoada em vermelho-escurio para ajoelhamentos; no altar, uma pequena lâmpada de cor vermelha acesa em castiçal apropriado a tal função, indicando a presença do Santíssimo Sacramento.
A dona Rosinha sempre se sentava à sua direita e eu, em tais ocasiões, à esquerda. Todas as vezes que eu a olhava, invadia-me uma agradável sensação de paz; ela adotava um
comportamento diverso do da irmã, dona Luizinha (Luíza Altair Comaru), um tanto ou quanto rebelde, impulsiva e de pouco envolvimento com o modus vivendi do grupo familiar; nesta hora, recostada na balaustrada de uma das três janelas frontais da casa do pai adotivo, um gato alvíssimo amoravelmente abraçado contra o lado esquerdo do colo, na altura do coração, a espreitar o movimento dos transeuntes – era dia de feira em Baturité.
Os dois – o Comendador e dona Rosinha – sempre me trataram com cordialidade e respeito, o que me envaidecia muito; eles, com vivências e experiência adquiridas no curso de existência culturalmente rica e de algumas décadas, e eu ainda muito jovem e carente de
aprendizados; eles dispostos a me ensinar e eu ávido de conhecimentos formativos. Sopa no mel.
Já com a senhorinha Luizinha, não se verificava sequer qualquer tipo de aproximação; era como se eu não existisse.
Os elogios sempre vinham recobertos de generosidade; as advertências sempre eram acompanhadas das devidas motivações. Os dois foram decisivos para que eu me tornasse professor cenecista; eles e o padre Luís Sávio Prata, ex-diretor do Ginásio Salesiano Domingos Sávio e então responsável pelo processo de encerramento das atividades desse exemplar instrumento de educação formal, abriram pra mim essa porta futurosa. Logo conquistei a confiança e a amizade do doutor Ilídio Silveira, o eterno diretor do Joaquim Nogueira, com sede própria defronte à praça Waldemar Falcão.
Voltemos à Copa.
A grande final, no estádio Azteca, na capital mexicana, ocorreu na tarde do dia 21 de junho de 1970, um domingo.
Já na segunda-feira, chegou-nos a informação de que o Comendador e filhas não estariam em Baturité no fim de semana seguinte; com ela, um bloco de papéis em tamanhos diversos, contendo matérias para a próxima edição do jornal; com ela, a tácita delegação de poderes para também agir na edição do próximo número da publicação. E em minhas mãos dois fatores que, a meu sentir, completavam-se e me estimulavam a dar o devido encaminhamento: um veículo de comunicação e de registro histórico e um fato de cunho universal. Avaliei os riscos, ponderei que valia a pena e decidi enfrentá-los.
Ainda na noite daquela mesma segunda-feira – entrávamos na semana dos exames escolares do meio do ano; eu era aluno do Joaquim Nogueira, no segundo ano do curso de Técnico em Contabilidade, equivalente ao 2º Grau, atual Ensino Médio –, produzi texto sobre a conquista do tri, enfatizando características individuais dos heróis do título que concorreram para a briosa participação coletiva em tão celebrado feito. Havia de permeio um incontido teor de ufanismo (15), perdoável, certamente.
Na diagramação das páginas externas – primeira e quarta –, já no sábado à tarde, exagerei no propósito de dar destaque ao fato, ao abrir a edição com manchete de cinco colunas – Brasil:
tricampeão mundial de futebol –, desrespeitando os “lugares cativos” predeterminados pela editoria titular, principalmente o do evangelho do domingo então rebaixado para o segundo plano, sob o qual inseri a matéria indicada para o devido lugar de destaque, liberando espaço para o texto introduzido pela manchete principal que, sem indicação de autoria, além de assumir o status “de primeira página”, revestia-se da importância de “editorial”, ou seja, que, em relação à publicação, expressava “a opinião dos seus diretores ou proprietários.” Teriam sido arroubos da juventude? Provavelmente sim. Depois da circulação do jornal, preparei-me para o puxão de orelhas. Era o meu subconsciente agindo com o rigor que a situação impunha. Alea jacta est. (A sorte foi lançada).
No sábado seguinte, logo que abriu as portas da livraria, a Isa, auxiliar da dona Amélia, após saudar-nos com o cordial “bom-dia” de sempre, avisou-nos num quase-sussurro:
– O Comendador está aí...
O anúncio atingiu-me com um preocupante grau de advertência. Era como se ela houvesse dito: “Prepare-se! O carrasco chegou!”. Perdi a concentração. Errava a caixinha do tipo da vez. As linhas do texto à minha frente bailavam, entrelaçando-se. Na disposição das letras no componedor (16), recorrentemente não as dispunha de ponta-cabeça – que seria o correto –, embora houvesse no corpo de todas elas uma pequena ranhura, sensível à função táctil da ponta dos dedos, a indicar a devida posição. Suspendi o que fazia e sentei-me num dos batentes da porta lateral do imóvel para, como diziam os mais velhos em idênticas situações, “tomar uma fresca", o que equivalia, no meu caso, a dar uma rearrumada nas caraminholas e preparar-me para o que estava por vir. E veio.
Na reunião, na sala de refeições do patrão, antes de sentar-me à sua esquerda e, assim,
atender o sempre cordial convite – Sente-se, rapaz! –, desviei conscientemente o olhar para onde ficava a capelinha de Jesus Crucificado e, por entre duas portas abertas, em linha oblíqua, avistei a luzinha vermelha, acesa, e, ante a certeza de que o Santíssimo Sacramento se fazia presente naquele altar, persignei-me respeitosamente. Nisso havia, obviamente, um imperceptível pedido de socorro. Ao sentar-me, certamente empalideci-me ou enrubesci-me (talvez, a primeira opção, posto que não senti sangue ferver-me nas veias). Bem à frente do bom homem, um exemplar da mais recente edição do jornal; com a secretária, os outros papeis contendo os demais motivos da reunião. E ele foi direto ao ponto, calmo mas com a voz levemente fanhosa em tom um pouco mais elevado que o habitual:
– Jovem, você pode explicar a razão disso aqui? – E pôs o indicador da mão direita em cima
da manchete essencialmente esportiva. Então, arrematou. – Acima do Evangelho! Da palavra do Senhor! – E, após descer o dedo ao ponto a que se referia, olhou-me com ar de quem espera uma justificativa convincente para um ato, a princípio, injustificável.
A educação recebida dos meus pais mesclava rigores com louvores, tudo ao seu tempo; e isso me dava uma boa condição responsiva. Apesar da situação mostrar-se embaraçosa, volvi o olhar para a mulher à minha frente, à procura de um ponto de apoio, e acho que ela pretendeu sorrir. Animei-me e tentei advogar em causa própria:
– Comendador, só há poucos dias é que percebi o tamanho do erro que cometi, ainda mais porque não há como revê-lo, corrigi-lo. Cumpre-me pedir desculpas por tal ato... cometido, é bem verdade, por... digamos assim... um arroubo da juventude...
– Arroubos da juventude! Eu também os tive, rapaz. Muito parecido com este seu. Acalme- se. Apesar de não gostar de futebol, confesso que também me alegrei com a conquista do Brasil.
Eu me lembrei, inclusive, da tristeza, do clamor do povo em 1950; certamente você não havia ainda nascido. – Virou-se pra dona Rosinha, indagando-lhe. – Minha filha, gostaria de dizer alguma coisa a respeito?
Agora já menos tenso, ouvi atentamente tudo o que, com a tranquilidade de sempre, a voz em musicalidade cativante e o olhar irradiando sabedoria adquirida no caminhar da existência, ela então observou:
– Luciano, não há nada demais no que você fez, não se trata... aqui e agora... de cometimento de erros irreparáveis a exigir corretivos... embora você deva sempre submeter a nós tudo o que diferente pretender fazer com o jornal. Evite arroubos, de qualquer ordem, pois os efeitos desses... digamos assim... extremos de comportamento nem sempre são saudáveis... a rigor, pra você mesmo. No caso, o seu texto é perfeito; não caberia qualquer revisão. O jornal acabou fazendo um registro histórico... e isso é louvável. Pra nós, o assunto está encerrado... não é, pai? – Ele manifestou concordância com um aceno de cabeça, os olhos de um azul celestial e um sorriso quase imperceptível, mas de muita expressividade. – Portanto, vamos cuidar da edição de amanhã, certo?!
Antes de concluída a reunião, dona Rosinha, com a autoridade delegada pelo pai, propôs-
me:
– Assuma outro espaço no jornal, agora escrevendo sobre esportes... notícias, comentários... fatos locais, regionais ou nacionais, a seu critério.
– Isso, rapaz. Não perca essa oportunidade. Dentro dos limites, é óbvio. Basta não se exceder... – Contemporizou o editor-chefe.
E eu juro ter ouvido: “Sem arroubos da juventude!”.
Na saída, aliviado, volvi novamente o olhar para a capelinha, para a luzinha vermelha, acesa a indicar a presença ali do Santíssimo Sacramento, e a persignação carregava, agora, um mais valor de agradecimento.
E assim nasceu a coluna por mim intitulada “Na marca do pênalti” (17), normalmente preenchendo espaço na última página, até como recurso do diagramador no fechamento da paginação, ajustando o que dispunha ao que se mostrava necessário. Como na vida...
“Eu moro em mim. Deixo sempre as janelas entreabertas pra sentir o sopro de raros afetos. A porta? Só abro aos poucos. Todos os dias, eu percorro os meus cômodos, corredores e contemplo a vida pela varanda. Mas as gavetas... Ah... As gavetas? Ainda não dá para abri-las. Senão, acabo tendo que morrer dentro delas.” (Mário Quintana).
Notas do autor:
(1) Jornal eletrônico, cujo editor-chefe é o professor Osvaldo Euclides de Araújo (segundaopiniao.jor.br).
(2) O general do Exército Emílio Garrastazu Médici.
(3) Basicamente Félix, Carlos Alberto Torres, Brito, Piazza, Everaldo, Marco Antônio, Clodoaldo, Gérson, Jairzinho, Tostão, Rivelino e Paulo César Caju.
(4) A primeira opção – o televisor público, na pracinha do Putiú – tornou-se imprópria, dado o horário do jogo (quatro da tarde), com a claridade do sol ofuscando o brilho do equipamento, debalde todos os esforços do artífice Mino no sentido de dar solução eficaz e efetiva ao problema. Por conseguinte, a segunda tinha de ser a que foi; afinal, quase ninguém mais dispunha de tal eletrodoméstico em casa.
(5) Expressão que identifica o selecionado italiano. Roberto Boninsegna foi o autor do gol.
(6) Pelé, Gérson, Jairzinho e Carlos Alberto Torres, nesta sequência.
(7) Pra frente, Brasil! – marchinha do compositor Miguel Gustavo, lançada em 1970.
(8) A Escola Apostólica do Sagrado Coração de Jesus – mais conhecida como Seminário dos Jesuítas – “um grande centro humanista de excelência acadêmica” –, e atual Mosteiro dos Jesuítas; o Ginásio Salesiano Domingos Sávio; o Instituto Nossa Senhora Auxiliadora; e o Centro Educacional Professor Joaquim Nogueira; respectivamente.
(9) Maternidade Maria Felícia Ribeiro (1953) e Hospital José Pinto do Carmo (1957).
(10) As irmãs de Caridade cuidavam da Casa dos Pobres Santa Luíza de Marillac, da Vila dos
Pobres São Vicente de Paulo, do Ambulatório São José e do Patronato Nossa Senhora do Livramento, cabendo ressaltar a atuação da Irmã Clemência, ora com processo de canonização em andamento no Vaticano, e a permanente coparticipação do abnegado Ananias Arruda, titular de duas comendas da Santa Sé, honoríficas de natureza eclesiástica, recebidas, em momentos distintos, das mãos do Papa Pio XII (Ordem de São Silvestre e Ordem de São Gregório Magno), as quais vinham em complemento à autorização papal (Pio
XI) para manter, em oratório construído no interior da sua residência, o Santíssimo Sacramento. Ao oratório, atribuiu o nome Capela de Jesus Crucificado, o mesmo antes dado ao cenotáfio, “monumento sepulcral” erigido à margem da rodovia que interliga Baturité a Pacoti, no local onde falecera dona Ana dos Santos Arruda (Donaninha), a esposa do magnânimo Ananias.
(11) Avenida 7 de Setembro, próximo à praça Waldemar Falcão, lá onde ela se finda e começa a Proença, via de acesso ao Palácio Entre-Rios, sede da administração municipal, e à igreja Matriz, dedicada à Senhora da Palma.
(12) O sonho de instalar em Baturité uma empresa de industrialização de frutas produzidas em toda a região serrana (banana, goiaba, jaca, por exemplo); o projeto da Companhia Industrial de Baturité - Cimba sempre mereceu entraves de naturezas várias nos escritórios da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, nem todos tecnicamente
admissíveis, como, por exemplo, o teor de salinidade da água. O velho Comendador se cansou e o sonho não se realizou; frustrou-se ante o definhamento das influências políticas sempre por ele proveitosamente acionadas em prol de projetos invariavelmente voltados para o bem-estar da coletividade baturiteense.
(13) Titular da livraria estabelecida na área frontal do prédio de esquina (avenida 7 de Setembro / rua Coração de Jesus, então popularmente conhecida como Ladeira do Pompeu) e arrendatária da Tipografia São Francisco de Sales que ocupava o mesmo espaço dos equipamentos de produção do jornal A Verdade.
(14) Título em caixa-alta e tamanho expressivo, mas condizente com o tamanho da página, ladeado, à esquerda de quem lia, pela imagem exterior da cúpula da Basílica de São Pedro, no Vaticano, uma das obras-primas do genial Michelângelo e “a mais alta cúpula cristã do mundo”, encimando expressão, em latim, retirada da 1ª Carta de São Paulo a Timóteo (1 Tim 3, 15), “Columna et Firmamentum Veritatis”, ou seja, referindo-se à “Igreja de Deus vivo” como “coluna e sustentáculo da verdade”; e à dirdita, as datas de fundação (5 de abril de 1917), de registros – em cartório e em conselho de imprensa nacional – e de diplomação em Exposição Mundial de Imprensa Católica, no Vaticano (1937).
(15) Ufanismo: atitude de quem se orgulha de alguma coisa com exagero.
(16) Componedor: Em tipografia, “utensílio em que o tipógrafo reúne manualmente os tipos, e que consiste em lâmina de metal com rebordo num dos lados e num dos extremos, e peça corrediça para estabelecer a medida” das linhas. (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e auxiliares, em Novo Dicionário da Língua Portuguesa). Nós empregávamos uma variação do termo: “compunidor”.
(17) Esse termo refletia a situação por mim então vivenciada, em dois momentos distintos: num deles, portei-me como o cobrador da penalidade – era, assim, um atacante; no outro, restou- me desempenhar a função de defensor, ou seja, na ingrata posição de goleiro.