UMA FOLHA QUE CAI...
Numa das mensagens em áudio, o amigo Vicentinho – uma vida de compartilhamentos com os próximos, à base do aprendizado familiar e do comando bíblico “Amar... ao próximo como a si mesmo” – questiona a “paternidade” da “folha seca” atribuída ao craque Didi pela imprensa internacional e historicamente admitida e aceita por todos os amantes do futebol-arte. Aí, o octogenário “guardador de memórias” e dedicado servo da Música, na condição de exímio na dedilhação de teclas, não apenas discorda do que está posto há mais de seis décadas, mas sustenta que o inventor do lance em que a bola ganha “efeito inesperado e semelhante ao de uma folha caindo” é, de direito, o putiense e ponta esquerda habilidoso, que se chama Aluísio.
Sem pretender entrar no mérito da questão, vamos tentar entender o assunto por etapas.
Primeiramente, o que vem a ser “folha seca” e por que se deu essa denominação a um determinado lance de jogo, até então inédito?
Trata-se, em primeira análise, da folha morta que se desprende da árvore e, sob efeito da lei da gravidade ou da gravitação universal (a do inglês Isaac Newton e a maçã que cai enquanto ele descansava sob a sombra da macieira; portanto, nada a ver com a bíblica que levou Eva e Adão a cometerem o pecado original: da gula, da curiosidade, da desobediência ou da satisfação do desejo carnal?) desce lenta e errante até o solo. Como é
possível perceber, há um elemento identitário que aproxima a queda vertiginosa da bola a esse fenômeno natural. E, para reforçar a ideia de folha caindo, à época do lance – gol contra a seleção do Peru, no Maracanã, em jogo pelas eliminatórias da Copa de 1958, vencido pelos brasileiros por 1x0, o que lhes rendeu a classificação –, era a estação da renovação, ou seja, o outono, com toda a arborização carioca trocando de roupa, ou melhor, de folhagem. E o futebol sempre foi uma área fértil para poesias e metáforas.
Em sequência, por que o protagonismo na criação da “folha seca” é atribuído ao Didi? [Não o humorista Renato Aragão, televisivo, sobralense e trapalhão; mas o carioca Waldir Pereira, titular da seleção brasileira em três Copas do Mundo (1954, 1958 e 1962), ganhador de duas (1958 e 1962), escolhido o melhor jogador da de 1958 pela Fifa e integrante da seleção da de 1962, quando mereceu da sempre exigente imprensa europeia o epíteto “Mr.
Football” ou, por tradução, “Senhor Futebol”.].
Didi protagonizou um fato histórico, quando pôs a bola sob o braço direito e desfilou elegantemente desde as redes do gol defendido por Gilmar (a França fizera o gol de abertura da final de 1958, em Estocolmo, capital da Suécia) até o círculo central do campo do Estádio de Rasunda, depositando- a na marca de cal para nova saída de jogo, com um gesto que valeu, diante de um público de quase cinquenta mil expectadores, como estímulo aos parceiros na forma de “podemos e faremos”. E fizeram. Golearam – num 5x2 inquestionável – e se tornaram os campeões do mundo; até ali, nenhum país conseguira tal feito fora do seu continente.
Em matéria por mim lida, quando era colecionador da revista Placar (exemplares adquiridos de jornaleiro ambulante, de cujo nome não me recordo, que fazia da garupa da bicicleta a sua banca) aí pelos meados da década de 1970, o genial Didi, ainda atuando pelo Botafogo carioca, sentira incômodos no joelho direito em chutes de longa distância, especialmente em cobrança de faltas. Contratara, então, um gandula e passara a permanecer no campo de treinos após as atividades regulares, experimentando chutes de vários jeitos, a fim de encontrar um que não lhe causasse desconforto. É bom ressaltar que, àquela época, a recuperação em casos do gênero se restringia à atuação do massagista e à indicação de medicamentos – analgésicos, basicamente – pelo médico. Não se pensava sequer em fisioterapia.
E o Didi teve êxito em suas experiências: a confirmação ocorreu no templo sagrado do futebol brasileiro – o Maracanã.
Quem já viu o gol do Roberto Carlos, numa magistral cobrança de falta contra a seleção francesa, às vésperas da Copa do Mundo de 1998 (a do transe do Ronaldo Fenômeno), quando o efeito da trivela combinado com a violência do chute produziram uma inesperada trajetória de curva pra dentro, em que a bola venceu a barreira, beijou o poste esquerdo e aninhou-se na rede do gol defendido por Fabien Barthez, deixando os blues (azuis) abestalhados (em puro cearensês), facilmente compreenderá como funciona a folha seca. A trivela (chute com os três dedos externos do pé) atinge o meio da bola, pressionando-a contra a grama (o chão), fazendo-a girar em torno do próprio eixo, de baixo pra cima, no trajeto ascendente e descair abruptamente no ponto em que se iniciaria o descendente. Se vai no gol, não há goleiro que defenda. O da seleção peruana sofreu nos olhos tal problema.
Pelo que eu entendi, Didi fazia assim.
Quanto ao Aluísio, por que Vicentinho o elege como verdadeiro inventor da “folha seca”?
Permito-me, agora, inestimáveis leitoras e leitores, viajar nas asas do pretérito e aterrissar no início da década de 1960, para registrar que havia uma grande rivalidade entre os putiuenses – ainda tidos como “índios” – e os habitantes da Rua (como chamávamos a região central da cidade; por isso não ”de rua”, mas “da Rua”). Era assim uma disputa inútil, infrutífera e sem sentido entre os da periferia e a elite. E isso se refletia, por exemplo, entre as equipes do Madureira Esporte Club (Vicente Pinto, Antônio Guariba, Zé Paulino ou BOC, Cariola, Carrapato, Carcará, Zé Nascimento, Aluísio) e do Salesianos (Padre Murilo, que jogava de batina presa à cintura e as pernas da calça enfiadas nos meiões: um meio-campista clássico; os alunos internos Zé Carlos, Zé Maria e Walter Codó; alguns externos; e o Flávio do seu Josué, funcionário da Congregação Salesiana).
Jogo num domingo à tarde, no campo do Oratório, com entrada pelo portão em frente à igreja da Senhora Auxiliadora, das irmãs salesianas, com um bom público: os torcedores do Putiú dispostos ao longo do barranco entre o campo e o muro de separação do leito viário de acesso ao centro da cidade; e os do Salesianos à sombra do mangueiral que margeava, pelo lado oposto, o palco da batalha.
O duelo transcorreu recheado de emoções, como sói acontecer em tudo o que é clássico. Num lance de velocidade e habilidade, Flávio, o ponta direita do Salesianos, venceu a marcação, invadiu a área na diagonal e acertou um petardo indefensável no ângulo do gol adversário. E o primeiro tempo terminou com o placar de 1x0 contrário aos interesses dos putiuenses.
Quando o jogo já se encaminhava pro final, o sol já vestindo o pijama para mais uma noite de descanso e recuperação de energias, verificou-se, pelo lado das mangueiras, um lançamento preciso, longo e pelo alto para o ponta esquerda Aluísio, que dominou a bola ao seu estilo, sem trazê-la rente ao chão, mas fazendo-a quicar à sua frente, driblou o marcador com um leve toque e ágil desvio de corpo e, com a criança no ar, desferiu um forte chute cruzado que, nas proximidades da pequena área, fê-la descair abruptamente, passar rente ao travessão – quase no encaixe com o poste esquerdo – e adentrar o gol do Salesianos, sob o olhar de espanto do goleiro que nem reagiu.
O Madureira assim conseguia o empate. Aluísio tinha usado o efeito da “folha que cai” e com a bola em pleno ar.
Quem não se lembra do incrível gol contra do Oseas, centroavante doPalmeiras, em cruzamento de escanteio cobrado pelo Marcelinho Carioca, cria do Flamengo e ídolo do Coríntians? Segundo o autor do lance improvável, o efeito da bola o traiu. Dizem que o Marcelinho conseguia tais efeitos porque tinha os pés de moça (ou de anjo). Aluísio também.
No caso em análise, resta apenas o aspecto da temporalidade. Ou quem fez primeiro: o carioca Didi ou o putiuense Aluísio? Eis a questão.
Agora, se me fosse exigido um posicionamento, de pronto eu me renderia à hipótese sustentada pelo Vicentinho, não por bairrismo, mas ante a veemência com que ele a defende.
Post Scriptum: Eu era apenas um garoto de menos de dez anos, já morava no Putiú, aprendia a gostar de futebol e torcia pelo time do bairro.
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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.