EU SOU NORMAL (2)
Aos poucos, em doses homeopáticas, venho percebendo como o idoso – e isso é o que sou – fragiliza-se à medida que avança no incontornável, insensível, incansável, irreversível e imutável tempo. Esse mesmo tempo que um dia suscitou dúvida no consagrado teólogo e filósofo Santo Agostinho. (“Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei.”).
Já não mais disponho da mesma capacidade proativa de passado não muito recente, quando comumente me antecipava ao problema, à questão, apenas pela percepção da sua proximidade. Afinal, quem já não disse, em face de algumas circunstâncias que se lhe mostravam perceptíveis, “Isso vai dar em merda!” ou “Isso vai acabar em confusão!” ou, ainda, “Quando isso fugir ao controle...!”? E aí eu agia.
Também já não posso contar com a capacidade reativa, a do enfrentamento do problema, da questão, quando me arriscava na busca de solução eficaz e efetiva, valendo-me da competência argumentativa ou, até mesmo e em última instância, expondo-me perigosamente com o uso da força da língua, da palavra dita de forma enfática – Por que você não vai catar coquinho?! (nisso devo reconhecer estar disfarçado um certo eufemismo ou abrandamento na locução, em face do respeito que devo a este ambiente) – e correndo o risco em potencial de ser levado por uma indesejável hecatombe, devido a tudo descambar para a força física, o que já não mais tenho.
E a que se deve toda essa ladainha? Que justificativa enseja tudo isso?
É que hoje, bem cedo, após as compras dos pães, potinho de canjica (pra minha eterna parceira) e pamonha na palha (pra um incorrigível sertanejo) na panificadora da esquina e as de frutas em mercadinho do bairro, pus-me a conversar com o “doutor” João Bosco – o filho do Mosael, sapateiro e músico da banda municipal da minha terra natal –, no interior do SOS Hospital Geral dos Sapatos, do qual, além de ser o proprietário, é diretor, clínico, cirurgião, anestesista, enfermeiro e instrumentador. Ainda lhe restam, na composição do perfil multifacetado, a natural inventividade de todo indivíduo espirituoso e a prolixidade ou desenvoltura de quem é conhecedor da sua terra e da sua gente (ao seu tempo, é óbvio!).
E a viagem pelo passado se alongou até não poder mais. Debulhamos, juntos, contas de um rosário de narrativas e personagens, um confirmando ou complementando tudo o que do outro ouvia. Ainda teve um cafezinho em copo de plástico, daqueles de queimar as pontas – dos dedos e da língua –, para estimular o agradável colóquio.
Até aí tudo bem.
Só que, tão logo me acomodei – após o apetitoso quebra-jejum com a minha parceira de jornada – na aconchegante rede de varandas, na parte mais interna da área coberta da minha casa, bem próxima de mim a vistosa copa de um cajueiro-anão nascido ao deus-dará (ninguém o plantou; apenas dele cuidamos na fase da fragilidade; ainda não botou uma florzinha sequer, apesar da exuberância), o botão da minha camisa de gola polo, não a de cor azul da vez passada, mas a de cor verde que com aqueloutra convive no mesmo espaço do guarda-roupas, embora se acomodem em cabides distintos, o que lhes pode ter dado a oportunidade do intercâmbio de informações, não me permitiu sequer fechar os olhos à espera do sono reconfortante e recuperador de energias.
Logo pôs-se a advertir-me e, o pior, a inquirir-me:
– O que você fez com o meu colega é inadmissível. Por que foi omisso? Por que lhe negou algumas outras informações de forma proposital? Por que somente aquele rol de elementos que caracterizavam parceiros das suas formativas vivências no seu bairro querido, se você dispõe de um estoque bem mais sortido?! Você podia ter-se alongado... E por que não o fez?
Às vezes, quem me revisita em situações análogas é a minha musa inspiradora: instigante, mas generosa. Ora, quem bate à porta da minha sôfrega paciência é um botão... um mero botão... e à impertinência, já não mais reajo como nos idos tempos. Antes, eu o faria compreender a inexpressividade da sua existência. Depois, eu me restringiria a fazê-lo valorizar o fato de me acompanhar por onde eu iria vestido com a verde camisa a que ele servia de adorno. Agora, o que faço? Recorro à memória, revisito a gaveta onde guardadas estão lembranças que me são deveras significativas; ou seja, rendo-me ao minúsculo algoz. E simplesmente desembucho:
41. o tijolinho de coco e a cocada do seu Zé Carneiro;
42. o torresmo do Manuel Passarinho (segundo o meu amigo, cunhado e compadre Ary, quem vai ao Putiú e não saboreia essa específica guloseima comete o mesmo erro de quem vai a Roma e não vê o Papa);
43. as peças de caprinos, ovinos e suínos dependuradas bem à mostra na área comercial da residência da família do seu Chico Forte, bem na esquina da aclivosa via de acesso ao Alto da Capela, bem como na da família do Adauto da Zilma, bem em frente ao módulo mais movimentado da pracinha;
44. os sonhos e suspiros produzidos e vendidos pelo seu Raimundo Cândido;
45. o alfenim das solteironas, alfabetizadoras e catequistas, as irmãs Alice, Ester e Graziela;
46. o doce japonês e os pirulitos vendidos pelos irmãos Clóvis e Ubiratan (Tantan);
47. o café com tapioca de coco ou fatias de bolo de batata ou nacos de cuscuz, ofertas especiais da Loura, a mãe da Oscarina, da Socorrinha e do Tim;
48. o caldo de carne moída no restaurante do casal dona Alaíde e seu Chico Pedrosa;
49. o zelo e a dedicação do casal de enfermeiros dona Dionísia e seu Ernesto, que residiam em casa defronte à Usina Putiú, a mesma que veio a ser habitada pela família do casal seu Chico Alves e dona Nozinha (compreensíveis leitoras e leitores, vocês têm ideia da profundidade da dor causada por injeção de Benzetacil sessenta milhões de unidades, aplicada com agulha de romper couro de cavalo?);
50. a bicicleta, em cuja garupa acomodava o cesto de pães para entrega – ao cantar dos galos – em várias unidades familiares putiuenses, da sempre bem-disposta dona Vicença;
51. a caixa de trabalho do engraxate Carcará, que sempre atuava no centro da cidade, jogava futebol e apreciava uma boa caninha;
52. a inigualável imitação do cantor, compositor e multi-instrumentista paraibano Jackson do Pandeiro – na voz, no penteado, no uso do chapéu e do pandeiro, nos trejeitos da dança –, pelo simplório Tupi;
53. a discrição do comerciante seu Leonardo, que se refletia em todo o seu núcleo familiar – mulher e filhas; ele mantinha, nos fundos do comércio, em área construída no entorno de uma enorme pedra, uma sinuca e uma mesa de carteado; lá só me permitiram entrar quando pude comprovar que já tinha dezoito anos;
54. os “causos” jocosos e as piadas contadas pelo Zé Pinto, um dos irmãos mais novos do Vicentinho;
55. as mentiras e as ventosidades do barbeiro paraibano Zé Martins;
56. a muleta do Zeca Macaxeira, inservível nas tentativas de retornar à pobre moradia, bem próxima à igrejinha, nas suas exageradas carraspanas;
57. a empáfia do Roberto do Detran, o lobo solitário que, por algum tempo morou no Alto da Capela, na mesma casa em que antes residiram, nesta sequência, a família do seu Henrique e dona Miroca e a do seu Adauto Alves e dona Cosminha, os pais do Delano, Janete e Adautinho;
58. a especial proteção dispensada ao amigo Zé Milton – menino, adolescente e jovem –, pela tia Cleonice (a Bahia), pelo Tiné da Graça, pelo Dutra da Tereza e pelo Guanabara da Adail; até que nasceu o Arturzinho...
59. o alicate e as chaves de fenda, sempre à mão, do eletricista mais importante do bairro – o Zé Mino –, por ser o responsável tanto pelo motor a óleo e gerador que forneciam energia elétrica nas noites do bairro até a chegada da rede da Chesf, quanto pelo televisor público instalado pela municipalidade no principal módulo da pracinha;
60. os chinelos e sandálias “extra fôrma” do Elialdo, o Pezão, irmão do Carlos Pedrosa e motorista de praça em jipe de quatro portas;
61. a referência recorrente em bingos à magreza do seu Ernesto, conferente da RFFSA, e a do seu Zé do Carmo, quando a bola chamada era a de número 11;
62. o recolhimento doméstico do Agenor do Carmo, bem-sucedido coletor do fisco estadual, tio do Wanderberg – ou simplesmente Wan – e do Carlos;
63. a admiração por Roberto Carlos do fã incondicional Álber, chefe do posto do fisco estadual em Itapiúna e vizinho do seu Holanda; ele possuía – e ouvia em radiola adquirida com essa finalidade – todos os discos lançados pelo ídolo;
64. a incontida animação e a imbatível garra dos integrantes do bloco “Pé no Chão”, familiar porque composto de netas e netos, além de agregados e amigas e amigos, do casal seu Zé Antônio e dona Maria, sob a batuta do seu Manuel Costa, dando um verdadeiro show no Balneário Itamaracá Clube, nos carnavais dos meados da década de 1970; era comum, já na madrugada da Quarta-Feira de Cinzas, a banda fazer um parada tática para os febris aplausos de corações agradecidos (Quem sabe, sabe / Conhece bem / Como é gostoso / Gostar de alguém); bateu uma saudade!
65. o donjuanismo de dois jovens filhos de distintos Expeditos: o Zé Olavo do mestre de obras Expedito Gonçalves e o Zé Aurino do mestre de linha Expedito de Paula;
66. a compenetração das belas senhorinhas, todas elas adequadamente vestidas, com véu branco sobre a cabeça, o terço entre dedos das mãos postas e o olhar puro e reverencial, ao receberem do celebrante a hóstia consagrada, ajoelhadas nas proximidades do altar da igrejinha; e eu, na condição de acólito, punha a dourada patena sob tão acariciáveis queixos (não havia pecado porque não havia desejo; mas só admiração);
67. o empenho e a pertinácia dos jovens Fernando Lopes e Airton Costa em estudos de preparação para avaliações regulares no curso da educação formal;
68. a firmeza de propósitos, o pleno domínio do ofício, a liderança inata e sem arroubos nem arrogância e a reconhecida competência de comando, perfil do calmo e tranquilo agente Zé Elias;
69. as marcantes e profícuas administrações inaugurais dos estabelecimentos educacionais – formação profissional e ensino – instalados em área devoluta na então Feira do Gado, hoje integrando o Grande Putiú: a Escola de Artes Donaninha Arruda (as professoras Célia Bastos e Maria Lima) e a Escola Coronel Estêvão Alves da Rocha (professoras Margarida Estêvão e Clarinha; e Nina Moreira e sua irmã Carmem Sílvia);
70. os cabelos louros e esvoaçantes do “Menino Maluquinho”, o Cabral do pastor presbiteriano seu Zé Fernandes;
71. o sorriso biologicamente contido do prestativo Inácio do seu Porfírio;
72. a acirrada disputa em jogos de bilharina, no bar do Miguel Pedrosa, entre o “Padim” Ribamar e o Alfredinho, o pai dos atletas Cueca e Véio;
73. o colar de contas azuis e brancas, o pente preto mantido no bolso da camisa e o cabelo preto como as asas da graúna, itens do perfil do respeitável senhor Osnilo, o eterno treinador de times de futebol do Putiú;
74. as malas de todos os tipos e tamanhos produzidas e vendidas em feiras – Baturité (aos sábados) e Pacoti (aos domingos) – pelos artesãos seu Valdomiro e o jovem filho Nivaldo, ambos vitimados por trágico acidente na serra de Baturité, envolvendo caminhão de feirantes que retornavam do labor, em fatídico 7 de setembro;
75. os gols de cabeça do Hélio (o Corró) e do Celinho (o Célio Marinho do Banco do Brasil) e os gols sempre prometidos e nunca marcados pelo Marciano (o agente de estação e o mais legítimo representante da afrodescendência – brancos só os olhos e os dentes – a envergar a gloriosa camisa 9 da mais querida agremiação do meu bairro);
76. os goleiros das várias versões do time do Putiú da minha época: o Ari (irmão do ponta esquerda Paulo Preto e filhos do Cícero Leiteiro), o Edmarzão (estivador da Usina Putiú e morador do Alto do Bode), o Roberto (irmão do ponta esquerda Bill), o Chico (genro do seu Mosael), o Newman (o mais arrojado de todos eles) e o Baladeira (contínuo do Banco do Brasil e morador da Boa Vista).
Esgotei-me. Exauri-me. Não adianta puxar mais pela memória. Algo certamente escapou à rede de arrasto da pesquisa. Desisto de lançá-la, por mais uma vez, no amplo oceano de dados pesquisáveis.
Quanto ao meu mais novo inquisidor, o botão da camisa de gola polo e de cor verde, nada lhe disse e nada lhe perguntei. Simplesmente ignorei-o. Ele vai aprender que não há castigo pior que o desprezo; e eu o desprezei. Permanecerá sendo o que na verdade sempre foi: um mero botão.
Quanto a mim, posso assegurar que agora quem se dá por satisfeito sou eu... sem dar margens a que sequer cogitem que não sou normal. Pois, na verdade, nunca deixei de sê-lo.
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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.