O CARA!
O capixaba de Cachoeiro de Itapemirim e consagrado Rei da Música Popular Brasileira (MPB), Roberto Carlos, confessa, em estribilho da canção Eu quero apenas, composta em parceria com o amigo-irmão Erasmo Carlos: “Eu quero ter um milhão de amigos / E bem mais forte poder cantar”.
Já o carioca de Tijuca e mineiro de coração, Milton Nascimento, que prefere ser chamado de Bituca, é mais conceitual em Canção da América (tradução de música em inglês que compôs para um amigo), ao sustentar que “Amigo é coisa para se guardar / Debaixo de sete chaves / Dentro do coração”.
O significado dicionarizado do verbete “amigo”, que se origina do latim “amicus/amici” (singular/plural), encerra ser, primordialmente, “Pessoa que ama, em que se pode confiar, com quem se tem uma relação de afeto, de companheirismo, de amizade”.
Em toda a minha septuagenária vida, celebrei uma inestimável diversidade de contratos sociais ou, em linguagem mais atualizada, de parcerias com requisitos não-formais e objetivos bem distintos; assim na infância, na adolescência, na juventude, na maturidade e por aí vai; assim na família, na escola, na igreja, nas estripulias da fase de moleque, nos campos de futebol, em mesas de bar, nos ambientes de trabalho e por aí vai.
Em todos os papéis sociais que me couberam e ainda me cabem desempenhar, relacionamentos com o/a outro/a se estabeleceram e se estabelecem sempre visando, a rigor, ao usufruto de ambos. E assim tive colegas – uns de relação mais intensa, mais frequente; outros nem tanto – e companheiros e chefias, lideranças, orientadores, facilitadores e por aí vai. Com cada um contraí obrigações e reconheci direitos; tudo em face do objetivo comum e, obviamente, conforme os regramentos sociais e legais então vigorantes e aplicáveis a cada caso.
Parceiros(as) de mim todos(as) foram. E as suas passagens pela minha vida certamente me obsequiaram com algum tipo de ganho, ou melhor dizendo, nem uma delas se mostrou inócua, estéril, ineficaz. De todas resultou crescimento pessoal – da minha parte, isso eu garanto.
Agora, poucos – nem pensar em milhão – galgaram o patamar mais elevado, alcançaram o merecimento de um lugar especial no lado esquerdo do peito, “dentro do coração”, e agraciados foram e são com a honra da medalha de “amigo” verdadeiro. Ao pódio, então!
Fazendo um recorte necessário – geográfico e temporal –, ou seja, restringindo o espaço de escolha ao meu velho e querido Putiú dos anos 60 e 70, cá estão – e sempre estarão, independentemente de se neste plano permanecem ou se já subiram para a morada do Pai – devidamente protegidos no que posso chamar de “panteão” dos amigos: o Antônio Vieira de Freitas (o Sabará), o Antônio Pereira da Costa Filho (o Caxangá), o José Mílton Café de Lima (o Zé Mílton), o Marcos Alverne Duarte Fernandes (o Alverne), o seu Luís Felício de Holanda (o seu Holanda), o Vicente Pinto de Araújo (o Vicentinho) e o Jaime Pereira Carlos, filho do casal seu Zé Carlos, aposentado da Rede Viação Cearense (RVC), e dona Maria de Lourdes e irmão da Salete, Vilani e Neuma (família que adotou a Gracinha – uma graça, por sinal! – da dona Adamir, irmã da minha segunda mãe, a madrinha Antônia Núbia).
Trata-se, como é possível perceber, de um seleto grupo de pessoas que, ao meu exclusivo sentir, preencheram e preenchem os requisitos fundamentais contidos no conceito dicionarizado aqui já exposto.
Pois bem. Pela proposta do título deste texto, ora destaco o meu amigo Jaime Carlos, o Cara! Sozinho, vale por mais que o “um milhão” pretendido pelo Rei. Na sua modéstia, o carisma. Na sua aparente timidez, a ousadia. Na sua simplicidade, uma forma única e exemplar de ler o mundo. No seu silêncio, a serena e severa observação. Nas orientações, o conhecimento, o discernimento e a polidez. No recolhimento, o outro. Inscreveu, de forma atuante, o nome na história recente do bairro.
Recupero exatamente no penúltimo desses aspectos um fato que serviu de alicerce à edificação da nossa inabalável amizade.
Estávamos nos primórdios do ano de 1975. Eu já era um cidadão, na exata acepção da palavra, na condição de agente de coleta do IBGE e professor do Joaquim Nogueira (CNEC). Certa noite, após a árdua labuta diária, mas com fôlego jovial, ao chegar no bar do Meu Santo recebi o recado de que o Jaime, então em plantão noturno de agente de estação, queria falar comigo. De imediato, atendi o chamamento do amigo, logo compreendendo a sua preocupação. De mim cobrava uma atitude enérgica em face do comportamento então adotado pelo meu irmão cinco anos mais novo que, em sua criteriosa observação, juntava-se a um grupo de amigos e, em todas as noites, ao lado do restaurante do casal Chico Pedrosa/Alaíde, nesse horário de portas cerradas, envolvia-se em perigosas cachaçadas. E o arremate da conversa jamais esqueci: “Salve o seu irmão! Você pode!”. Eu podia.
Com a parceria dele – que não apenas mostrava o erro, mas também procurava indicar um meio de correção –, pode até ser que não tenhamos conseguido salvá-lo integralmente, mas lhe demos um redirecionamento de vida.
O Jaime, conjuntamente com o seu Zé Elias, outro profissional respeitado em toda a rede ferroviária e, por isso, eles, capazes de exercer influência, conseguiram autorização para que o Walter, o meu irmão mais novo, tivesse uma fase de formação e treinamento na estação, compartilhada com o Edmar do seu Expedito de Paula, então mestre de linha, ambos sob a supervisão do meu amigo de fé. E até de plantões eles participaram. No caso do meu irmão, dava-se o necessário preenchimento da mente vazia, do enfrentamento ao ócio prejudicial.
E veio o concurso público. Waltinho – era como nós o chamávamos – só conseguiu nele inscrever-se porque a data-limite (um sábado!) era 13 de setembro daquele ano e, por incrível que possa parecer, coincidia com a que ele completava a idade mínima exigida em edital (18 anos). Algo bem superior conspirava em nosso favor.
A nossa vitória – dele, do Jaime e minha – aconteceu... e de forma histórica. À aprovação, seguiu-se a nomeação para a Agência de Baturité. E, se vi brilho nos olhos do meu irmão (e eu vi!), o reflexo eu comprovei nos do meu amigo Jaime Carlos.
No dia da posse, a turma do Movimento (setor responsável pelo controle das viagens ferroviárias – de pessoas e de cargas) presenteou o novel funcionário da Casa com uma lata de leite Ninho e uma mamadeira, cuja simbologia explicitava a chegada do mais jovem de todos os que integravam os quadros da empresa.
No meu agradecimento ao Jaime, fiz questão de ressaltar que se tratava de dívida que jamais conseguiria pagar por não haver moeda circulante que a monetizasse. Com um breve sorriso, ao seu estilo, ele me fez de remido.
Ainda me recordo da frustração sentida por ele – que logo se irradiou e também me contagiou e, juntos, sofremos o desprazer do nada poder fazer –, quando, por desavenças no relacionamento com o nosso pai, Waltinho decidiu transferir-se para Quixadá, numa troca de posto com Edmar. E ali o meu irmão iniciava uma vida errante por várias agências do complexo ferroviário cearense.
Por essa e por muitas outras situações de reconhecido apreço, declaro que o meu amigo Jaime Carlos era o Cara!
Post Scriptum: o Edmarzinho, o mais regular camisa 5 que vi jogando, titular absoluto nos nossos tempos de Putiú Atlético Clube, também lograra êxito no certame e assumira em Quixadá.
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Luciano Moreira, baturiteense, ex-professor cenecista, servidor público federal aposentado e graduado em Letras – Português e Literaturas Brasileira e Portuguesa pela Universidade Federal do Ceará.