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CONTOS QUE CONTO...

Conto narrado pelo putiuense

Luciano Moreira


MEIA-VOLTA, VOLVER!


Esta quem me contou, há cerca de meio século, foi o putiuense de quatro costados, amigo de longa data e espirituoso José Pinto de Araújo (O Zé Pinto da Coelce).

Ele servia o Exército, como era imperativo aos jovens da época, mormente porque existia em Baturité um núcleo de formação militar, o Tiro de Guerra nº 249, cujas instalações ocupavam todo aquele prédio lateralizado com o do Paço Municipal, e ambos fronteiriços à secular igreja Matriz.

Assim que os verde-oliva, por razões estratégicas ou orçamentárias, levantaram  acampamento, o prédio voltou a acolher sedes de várias outras repartições públicas (por exemplo, o IBGE, o Detran e a Adagri, só para citar as da minha época).

Lembro aos diletantes leitoras e leitores que, em todos os setembros, ocorriam as festas em louvor à Senhora de Nazaré, padroeira da vizinha Capistrano.

Recordo, também, que era comum a presença de guarnições do TG, em apoio ao policiamento local, principalmente nas últimas noites do novenário. Como a de encerramento dos festejos noturnos coincidia com feriado nacional – 7 de setembro, o dia da Independência –, o aglomerado de gente era potencializado, exigindo reforço no setor de segurança, e isso levava o chefe da edilidade capistranense a recorrer à guarda especial.

Ora, na entrada da cidade, à margem esquerda de quem a ela se destina, em terreno elevado, havia um forró animado e concorrido, principalmente na noite da véspera do dia da santa padroeira. Um frondoso cajueiro dava um toque sertanejo àquele espaço festivo. 

O soldado José, devidamente composto para o pleno exercício da função, integrava a guarnição destacada pelo comando da tropa para acompanhar o aludido forró. Em jipe do Exército, lá chegaram, sob o comando de um cabo, ele e mais dois companheiros de igual nível. 

José logo percebeu, a um canto da aglomeração em área frontal à espaçosa casa de dança, um senhor de estatura mediana, meio atarracado, vistoso bigode e extensa calvície. Aos colegas de ofício, propôs indagando:

– Quanto vocês apostam como eu “tiro o selo” daquele careca?

– E você conhece ele? – Perguntou um dos parceiros.

– Não. Aí é que está o principal motivo da aposta. – Respondeu.

– Não vá se meter em encrenca. A gente está aqui para oferecer segurança às pessoas. – O cabo advertiu-o.

E eles fecharam uma aposta. De pequeno valor. Era só pra dar um molho ao negócio.

O José aproximou-se do senhor de bigode e...  zás! Acertou-lhe, com as pontas dos dedos da mão direita a região desprovida de proteção capilar. O homem reagiu com brusco movimento de corpo, como pretendesse descobrir o autor de tamanho despautério, sob um olhar de fúria. E o José saudou-o efusivamente:

– Romário, meu amigo Romário!  

– Não sou nenhum Romário, seu filho de uma égua! – Disse isso já encarando o seu desafeto, com o indicador em riste.

– Me desculpe, senhor! Eu achei o senhor muito parecido com um amigo de infância que não vejo há algum tempo... – O soldado fez de conta que se tratava de um engano.

É óbvio que a farda ajudou na contemporização do outro. O envolvimento da massa com a festa também colaborou. O homem apenas mudou de canto, indo para o outro lado do agrupamento de pessoas.

E o soldado José embolsou o total da aposta, em meio a risos furtivos dos parceiros, incluindo o cabo que já houvera presenciado algumas outras traquinagens do subalterno moleque.

O tempo passou. A guarnição continuou fazendo a ronda. Tudo muito tranquilo. A diversão avançava saudavelmente sobre todos: os que dançavam e os que assistiam.

Quando fizeram uma parada estratégica, lá estava, ao alcance da visão do grupo e de costas, o senhor atarracado e de bigodes e ampla calvície. E o José propôs uma nova aposta, sob o mesmo motivo, mas em valores que levassem em conta a natureza do risco. Agora, nem o cabo se manifestou, mantendo-se na retaguarda do grupo.

Apostas casadas, lá se foi o José, em passadas lentas, olhar firme no alvo, como se fosse um caçador a enredar a caça, com cuidado para não espantá-la. Já bem próximo do homem, a ação: zás!

E a reação veio rápida e em tom de ameaça:

– Seu filho de seiscentos diabos, seu samango saído das pragas do inferno, eu não já lhe disse que não sou seu amigo! Me deixe em paz, Satanás!

O homem careca, soltando faísca pelas narinas e xingando até a “Mãe do calôr de figo”, enfiou-se no meio da multidão e, sem sequer esperar as desculpas do abusado soldado, desapareceu, escafedeu-se.

E, mais uma vez o José embolsou todo o apurado das apostas. Mais uma vez, os parceiros riram, embora tenham perdido algum dinheiro.

Já era madrugada. Algumas pessoas já abandonavam o local do forró, ou cansados porque dançaram muito ou frustrados porque não conseguiram sequer adentrar o salão de danças. O sono servia de desculpa a todos.

Logo, logo o sol brilharia. Já nem mais se ouvia o som da irradiadora que, não muito distante dali, animava a concorrida quermesse e o disputado leilão de prendas. 

Então, a cidade já se prepararia para a procissão no final da tarde e a missa de encerramento da festa religiosa no começo da noite. A guarnição do TG já se dispunha a voltar ao ponto de apoio, no coração da praça defronte à igreja Matriz. Os três soldados esperavam apenas o cabo decidir sobre a melhor hora de baterem em retirada.  

Só que o José avistou, pela abertura de uma das janelas, o homem de bigode desfrutando de uma dança com incansável parceira. Não se conteve. Dirigiu-se, então, ao grupo:

– Me esperem. Não vão me deixar sozinho aqui. Vocês vão ver. Agora, sem  aposta é que vai ser.

E caminhou calmamente em direção à sala de danças, ora com baixa demanda. Logo na entrada encontrou uma jovem dançarina que, de pronto, aceitou o convite por ele feito para uma contradança. E dançaram como só quisessem diversão. Era a estratégia do soldado para aproximar-se do homem de bigode sem lhe causar desconfiança. De repente, parou bruscamente, liberou-se da parceira e, em ação rápida... zás! Acertou o alvo... novamente! Antes que a “vítima” reagisse, deu-lhe um forte abraço, com fraseado nada convincente:

– Amigo Romário! Eu já o confundi duas vezes com um mesmo senhor, muito parecido com você.

Com um certo esforço, o “senhor” conseguiu desvencilhar-se do abraço de tamanduá, de “amigo da onça” e, sem dizer uma única palavra, sem se despedir da moça com quem dançava (que, na verdade, não entendeu nada do que estava acontecendo) e sem sequer olhar para trás, tomou o rumo de casa. Foi-se!

De pé, na porta de entrada da casa do forró, ainda sob o som convidativo do resfolego da sanfona, o soldado José ouviu a ordem do cabo:

– Esse-dê 17! Meia-volta, volver!

Obedeceu.               

Na barraca da dona Marocas, nas proximidades da igreja à Senhora de Nazaré, pagou café e bolo para os do grupo. Com o dinheiro das apostas, é claro!


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