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CONTOS QUE CONTO...

Conto narrado pelo putiuense

Luciano Moreira


A SINA DE VANINHA 


Eu era um dos moleques em plena atividade no nosso querido Putiú, aí pelos primeiros anos da década de 1960.

Como em todo bom moleque, o senso de responsabilidade tendia a zero e o prazer da aventura subia às alturas.

Fazia parte de um reduzido grupo de parceiros, cujos contatos e atos eram reais; nada da comodidade e segurança que a virtualidade dos grupos da contemporaneidade eletrônica nos oferece enquanto agimos como membros aproximados por um novo conceito de amizade.

Era véspera do Natal. Recentemente, o agente da estação, seguindo recomendação do setor de segurança da Rede, acabara de impor que vendedores ambulantes não mais usassem todo o calçadão da gare, área que passava a ser de uso restrito e exclusivo de passageiros e acompanhantes.

Aí entra a figura da Vaninha. E não há melhor narrativa que a contida no meu livro Sinfonia – em prosa – d’uma existência prodigiosa, às fls. 400 e seguintes, cujo oportuno excerto a seguir transcrevo literalmente.              

“Como morava em ruazinha de morro próximo à estação ferroviária, agora sozinha em pleno estado de viuvez, passou a produzir guloseimas especiais, a dispor tudo em tabuleiro de madeira que equilibrava no alto da cabeça, sobre uma bem trabalhada rodilha de pano. Então, descia o morro e vendia toda a produção aos passageiros do trem, vindos da capital no começo do dia ou vindos do interior no começo da noite, turno em que costumava enfiar uma lamparina acesa no meio do tabuleiro para tornar mais visível as suas ofertas e atrair os interessados em adquiri-las.

“No começo da noite da véspera do Natal, a cidadezinha festivamente iluminada e as pessoas ternamente felizes, um tabuleiro de guloseimas especiais flutua no espaço próximo às janelas do trem, uma lamparina acesa bem no centro, uma voz feminina a oferecer suas prendas. No trilho ao lado, alguns vagões de carga fazem o pernoite estratégico. Um moleque corre sobre eles com a mão cheia de cascas de banana. Para repentinamente. Escolhe o tabuleiro e zás! O projétil atinge violentamente a lamparina que de imediato se apaga, lança em jorros dispersos o gás querosene que lhe enchia o ventre e alimentava o lume e é arremessada à distância. O tabuleiro perde o equilíbrio e vai ao chão. As guloseimas se esparramam sobre o pedrisco que entremeia os dormentes que servem de base aos trilhos. Tudo perdido.

“– Puta que pariu! – a sofrida Vaninha não se conteve. – Que diabo eu fiz de tão errado para pagar tão caro! Mil perdões, meu Deus! Mas aqui se esgota a minha paciência. Não entendo por que sofro tanto. 

“Recolheu o tabuleiro. Na escuridão, os restos da lamparina se perderam. Caminhou cabisbaixa até a calçada da estação. Sentou-se no meio-fio. E chorou. Em profusão. Quis morrer, dar um final a uma vida inglória. O trem partiu. Todos se foram. Só ela permaneceu ali. Por desespero ou por cansaço, os braços cruzados sobre os joelhos, a cabeça neles apoiada, adormeceu.” 

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E NO FACEBOOK (25.12.2018)

Em resposta a uma das mensagens do amigo Cleyton Monte, hoje doutor em Ciências Políticas pela UFC, eu me rendi à realidade; senão, vejamos: “A você, revelo um segredo (ou confesso um pecado): o moleque que correu sobre os vagões de carga e acertou com projétil de cascas de banana a lamparina acesa no tabuleiro da pobre vendedora de guloseimas... você imagina quem pode ter sido?... Isso mesmo. Eu. Com uns onze ou doze anos de peraltices e molecagens bem na moda, há mais de meio século. Por conceito, a literatura cuida de desrealizar o real. E aí se dá o ponto de contato entre o mundo real e o por mim idealizado. Viver é perigoso, mas como é gostoso!”.


Post Scriptum: Vaninha é um nome fictício atribuído pelo autor a uma personagem real.

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