VOZ DA EXPERIÊNCIA
Conto narrado pelo putiuense
Luciano Moreira
Era um sábado. De um qualquer mês. De um ano qualquer.
Um jovem, em pleno processo formativo e declaradamente eterno aprendiz, já protagonista consciente das suas narrativas pessoais, após o cumprimento das obrigações próprias de um quase arrimo de família, senta-se na cadeira do seu barbeiro preferido, esperando dele o sempre prestativo serviço, conduzido costumeiramente com o embalo da contação de “causos”, carentes – todos eles – de veracidade e ambientados – na sua quase totalidade – no agreste paraibano, lá onde se deu a sua origem genuinamente matuta, com marcas que indelevelmente ainda o acompanham, o sotaque em especial.
Ninguém mais ali está. De matéria e espírito, apenas os dois: o jovem e o barbeiro.
De repente, a sensação de que alguém se acomoda no rústico banco de madeira às suas costas invade o campo sensorial do rapaz; após fixar, por ação quase reflexa, o olhar no espelho à sua frente e, em ato contínuo, direcioná-lo ao velho contador de “causos”, ele conclui, ante o que pretende mas não consegue ver, tratar-se de fenômeno sobrenatural que só a ele se fazia perceptível.
Acalma-se, não deixando que a estranheza altere o seu comportamento; afinal, uma afiada navalha viaja lentamente pelo seu rosto, num processo que visa eliminar pelos ao nível da pele. Há, sim, um risco de lanho e sangramento, no caso de movimento brusco, inesperado. Aos poucos, deixa-se dominar pelo êxtase; dorme de olhos abertos. E já não mais ouve a voz do barbeiro. É a de um senhor de muitas vivências que reverbera maviosamente, com suavidade, na sua caixa de ressonância auricular, com tímpano, martelo, bigorna, estribo, etc. E o que ele ouve? Simplesmente, estes aconselhamentos:
Não faça nada de que possa vir a arrepender-se. Lembre-se de que o perdão não pertence a quem pede, mas a quem concede e o pedido de desculpas nunca remove toda a mágoa incrustada na alma de quem o acolhe. Algum ranço subsiste.
A confiança deve ser protegida por couraça que, revestindo-a por inteiro, a tudo resista. Afinal, quem a perde, jamais a recuperará integralmente.
Nunca assuma compromissos que vão além da sua capacidade de honrá-los. Considere sempre que o “não”, quando empregado devidamente, também consiste em excelente solução para questões complexas e só aparentemente simples.
Evite qualificar as pessoas pelos atos que cometem, principalmente os à margem dos rigorosos conceitos da crença e da sociedade. Na verdade, eles, os atos – e tão somente eles – é que se fazem merecedores de rótulos.
Não pretenda impor a sua verdade a quem quer que seja, como se ela fosse absoluta e universalizante. Mostre-se sempre disposto a ouvir e predisposto a rever os seus conceitos, antes que eles se tornem arraigados.
É de todo improdutivo e desgastante enfrentar quem detém circunstancialmente o poder pela força (de si ou do cargo que ocupa ou da função que exerce ou, ainda, da arma que porta). Guarde as suas energias e argumentos para, se for o caso, confrontar quem detém o poder pelo mérito do conhecimento e da competência; neste, sim, haverá alguma propensão ao convencimento, porquanto certamente será apreciada a sua capacidade persuasiva.
Conscientize-se de que o fato de vestir uma camisa (ou “manto sagrado”), de empunhar uma bandeira (de quaisquer cores), de abraçar uma ideologia (bem fundamentada ou não), isso não o faz ser melhor ou pior que ninguém; pode até torná-lo diferente. Assim, mantenha-se sempre compreensivo – algo bem mais que transigente – e fuja para longe de quem demonstra optar sempre pela incompreensão, não-aceitação do diverso, intransigência.
Cultive a boa arte de bem apreciar as suas amizades, tratando-as como o bom jardineiro mantém agradável aos sentidos o jardim sob os seus cuidados. Se as rosas são belas e aveludadas, os espinhos, por seu turno, são ásperos e pontiagudos. Elas sugerem poesia e propiciam o amar; eles provocam a dor e fazem sangrar. Observe, pois, que os amigos verdadeiros, como dizia o poeta, devem ser guardados no lado do peito onde bate o coração. E cuide bem dele!
Valorize todas as suas conquistas à base do suor do rosto, em todas elas há um pouco de você, o conquistador. Agora, dê a necessária ênfase as que puder levar sempre com você, afinal nunca se sabe quando a viagem se fará derradeira. Quando a Morte bater à sua porta, sozinho você estará e nada já lhe pertencerá. Nunca, em hipótese alguma, faça tábula rasa desta regra pétrea: somos fundamentalmente mortais.
Jamais esqueça que há um Ser Supremo que tudo criou e tudo rege. Nele deposite a sua fé. Ame a Vida como uma dádiva divina. Cuide do Hoje sem se preocupar com o Amanhã. Respeite a Natureza; dela depende a pureza do ar que respiramos. Seja integralmente uma célula viva da Humanidade. Lembre-se de que um dia, não sabemos quando, todos seremos chamados a responder por nossos atos. Feliz de quem, nest’hora, estiver pronto.
Seja feliz! Compartilhe a sua felicidade com todos que compõem o seu universo particular. E, se viver é perigoso, em compensação, trata-se de algo muito gostoso.
Um fluxo de vento morno circula no rústico ambiente, entrando por uma das portas e saindo pela outra; então, com rápido assovio, evola-se. O jovem já não se percebe sob a estranha sensação que, ao invés de afligi-lo, fê-lo dormir de olhos abertos. O barbeiro reage com um “Que diab’é isso?!” ao arrepio que lhe encrespa os pelos dos braços. Sem a menor pretensão de desvendar o mistério, atribuindo – sem isto manifestar, obviamente – o fato à provável advertência por andar contando tanta mentira, retoma o que fazia, com a serenidade de quem cotidianamente enfrenta os “ossos do ofício”.
(...)
Eu era o jovem. O Zé Martins, o barbeiro. O seu Holanda (Luiz Felício de), o conselheiro. A barbearia ficava quase defronte à pracinha do Putiú. E tudo não passou de um agradável sonho. Acordado, sentei-me na minha rede de varandas e, agradecido à generosidade d’Aquele que me concedeu a oportunidade de recolher tão pertinentes aconselhamentos, persignei-me. Eu que sou um eterno aprendiz.
E o silêncio da noite agasalhou-me, embalou-me, fazendo-me dormir novamente; com a naturalidade de uma criança, a que sempre dormita no mais recôndito do meu ser.